A representação fantasmagórica do western sob concepção da natureza violenta e hostil do ser humano. Dead Man (idem, 1995) contrapõe as expectativas de um western, há um questionamento moral do homem reprimido na tentativa de se inserir num contexto histórico onde os valores passam a não ser mais algo fundamental. A jornada espiritual de William Blake traduz-se não apenas na forma como se submete a uma forma de vida até então contrária a sua ideologia, mas também a recorrência de misticismos; o existencialismo passa, portanto, a fazer parte da contraditória vida de Blake e consequentemente do filme em si.
O western é um gênero em constate revisão; por esse aspecto Jim Jarmusch cria um subgênero dentro do próprio gênero, de forma tão subjetiva e autentica que integra um grupo composto por poucos westerns, considerados faroestes pós-modernos, abrindo um novo olhar para os aspectos revisionistas que levaram o gênero a glorificação e em seguida a decadência. Se três anos antes Clint Eastwood havia entregado o majestoso símbolo pós-moderno do western que daria um fim definitivo para suas lendas, Jarmusch recria ao seu estilo e faz um faroeste representativo que inverte todo o conceito do gênero.
A começar sua recriação por inserir o personagem num contexto metafórico. Não é o oeste selvagem em sua essência, Jarmusch opta por um oeste simbólico feito de crenças e espiritualismo. O que guia Blake nessa jornada metafísica é o índio chamado apenas de “Nobody” (Gray Farmer), personagem involuntariamente cômico e de conhecimento empírico, que o acompanha em sua preparação espiritual; é interessante a forma como o personagem se intercala na narrativa, de uma forma tão sutil que o espectador pouco percebe o quão relevante será nessa viagem.
Com esse tom despretensioso Jarmusch conduz a obra. Afinal, trata-se de um aprofundamento em um personagem espiritualmente morto. A complexidade da narrativa provoca, em um primeiro instante, uma desorientação do espectador; mas em momento algum Jarmusch manifesta interesse em tornar o filme menos complexo, o intrincado roteiro acaba por se tornar perturbador em certo momento, quase que incompreensível. E é exatamente nesse ponto que o filme demonstra um de seus grandes diferenciais dentro do gênero e, mais especificamente ainda, dentro da época, o nível de complexidade é atípico.
O diretor nos reserva ainda mais uma demonstração de genialidade. Criar algo novo dentro do western é uma das tarefas mais árduas que se pode imaginar; Jarmusch não faz de seu protagonista um herói ou um vilão, tampouco um anti-herói. O personagem interpretado por Johnny Depp não se encaixa em nenhum desses conceitos. Sim, de fato é um forasteiro, mas isso não é uma figura que possa definitivamente representar quais seriam seus conceitos morais. Jarmusch não o define como tal, pois Blake já é um homem morto e essa figura só poderia ser refletido espiritualmente.
Por esse fato não há cores. A fotografia em P & B revitaliza a ideia de que o tempo e o ambiente são inertes para um personagem metaforicamente morto. Desse modo, Jarmusch constrói uma atmosfera melancólica ao mesmo modo que faz uma sutil estilização de um simples momento do filme; abrir mão de um western violento não seria uma das melhores decisões. Mas Jarmusch faz mais que isso, impõe sua técnica e aproveita cada detalhe, lentamente... Especialmente faz questão de penetrar a trilha-sonora na mente do espectador, a violência não integra uma cena por si só e a belíssima trilha é expressivamente impactante.
Um western pós-moderno que abre um leque de interpretações. Jarmusch rompe quase todos os conceitos do gênero e redefine-se em um estilo singular sem deixar de ser um legítimo exemplar. Perdão pelo clichê, mas é inevitável, “Dead Man” é uma aula de como se fazer um filme, e que filme...
- “William Blake, você sabe como usar essa arma¿.”
- “Na verdade, não.”
- “Esta arma irá substituir sua língua. Você aprenderá a falar através dela, e sua poesia então será escrita com sangue.”
Nossa Patrick, valeu mesmo, que bom que gostou! 😁²
Belíssimo texto, realmente está entre os seus melhores Alexandre!
Valeu Darlan! 😁
Ótima crítica, no mesmo nível do filme.