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5 fatos sobre os Estados Unidos de Era Uma Vez Em… Hollywood

O ano de 1969 é fundamental na minha vida. É o ano em que minha mãe nasceu! E é também um ano fundamental na história do mundo. O ano derradeiro de uma década de profundas transformações sociais, culturais, políticas e até cinematográficas. E o berço maior disso tudo foram os Estados Unidos. Não à toa esse período que completa 50 anos em 2019 foi o momento do mundo escolhido por Quentin Tarantino para basear seu 9º filme, o 4º de época consecutivo (antes, ele só filmara histórias contemporâneas).

Era Uma Vez Em… Hollywood é, mais uma vez, um multiplot de Tarantino. Um filme em que os arcos e subtramas de três personagens principais correm paralelos à trama principal. Rick Dalton (Leonardo DiCaprio) é um ator que já não vive o sucesso de outrora e teme o declínio iminente. Cliff Booth (Brad Pitt) é o seu dublê, e uma figura ainda mais decadente por causa da idade (talvez) e dos rumores de um crime grave (que não se sabe se ocorreu de fato), mas que segue na luta — seja de modo figurado, quando detratado por profissionais da indústria, seja literal, brigando em sets ou em nome de sua ética peculiar. Sharon Tate (Margot Robbie) é uma jovem atriz casada com um diretor renomado que vive o melhor de Hollywood: o glamour, as festas, uma carreira em ascensão e a própria juventude.

Além da trama, porém, há todo um contexto fundamental para se captar a essência do filme e todas as suas sutilezas. Assim, traço abaixo uma linha do tempo que começa em janeiro e termina em agosto de 1969, exata 1 semana após o fim dos eventos de Era Uma Vez Em… Hollywood. Uma curta timeline com 5 momentos fundamentais que resumem o contexto histórico do novo filme de Quentin Tarantino. Enfim, tudo que você precisa saber para entender o mundo real que cerca a ficção de Rick, Cliff e Sharon. E Tarantino.

No fim, uma síntese sobre esses atribulados Estados Unidos da vida real em relação à fabulação nostálgica de Quentin Tarantino do período, cujo auge foi 1969, em Era Uma Vez Em… Hollywood. Confira!


Nixon presidente

No dia 20 de janeiro de 1969, Richard Nixon se tornou o 37º Presidente dos Estados Unidos. Sendo um dos mais polêmicos. A maior bomba envolvendo o seu nome foi o Caso Watergate, usando de espionagem ilegal no escritório do Partido Democrata no Complexo Watergate para ganhar eleições. Porém, no contexto de Era Uma Vez Em… Hollywood, o mais importante é saber o que levou o concorrente republicano ao poder 8 anos após ser derrotado em sua primeira corrida presidencial, contra John F. Kennedy.

Após o assassinato de John F. Kennedy em 22 de novembro de 1963, o vice Lyndon B. Johnson assumiu a presidência e ganhou as eleições no ano seguinte. Em 5 anos de mandato, os bons feitos da legislação da Grande Sociedade (que incluiu diversas medidas sociais, como a assinatura dos direitos civis para negros) se perderam em meio ao fracasso da Guerra do Vietnã, às suas enormes perdas humanas e aos conflitos raciais que eclodiram em todos os EUA. Sua popularidade despencou ao ponto de o Partido Democrata não indicá-lo à reeleição. E o país, dividido, virou um barril de pólvora.

Homem na Lua

A eleição de Nixon amenizou a insatisfação da população branca, mas as tensões raciais e os protestos contra a Guerra do Vietnã não cessaram. Ciente disso, o presidente agiu como um conciliador em ambas as frentes, com medidas gradativas de inclusão dos negros e retirada dos americanos das selvas vietnamitas — conflito em que os Estados Unidos se envolveram como forma de impedir um efeito dominó de avanço do comunismo no mundo. O feito de maior impacto servindo a esse propósito, então, aconteceria na principal disputa tecnológica da Guerra Fria: a corrida espacial.

A União Soviética iniciou a exploração espacial com o lançamento do satélite artificial Sputnik 1 em outubro de 1957. E seguiu na frente: no mês seguinte, a cachorrinha Laika se tornou o primeiro ser terrestre a desbravar o espaço. As conquistas fariam os EUA se mexerem e criar a NASA, em julho de 1958. Mas não a tempo de ser o primeiro país a lançar o homem no espaço: o soviético Yuri Gagarin foi o pioneiro a bordo da nave Vostok 1. A disputa se acirraria e, no dia 20 de julho de 1969, o Programa Apollo superaria seu histórico de perdas (principalmente humanas) no clímax da corrida espacial quando Neil Armstrong e Buzz Aldrin se tornaram os primeiros homens a caminhar no solo lunar. Uma vitória do capitalismo sobre o comunismo sem o disparo de um só tiro.

Easy Rider e o início da Nova Hollywood

Na semana anterior, no dia 14 de julho de 1969, chegava aos cinemas de Nova York o drama Sem Destino, conhecido mundialmente como Easy Rider. Morto no último dia 16, Peter Fonda se inspiraria em uma fotografia tirada ao lado de Bruce Dern (que interpreta o velho George Spahn em Era Uma Vez Em… Hollywood) ao idealizar um filme sobre dois jovens que experimentam a “liberdade total” cruzando o país de motocicleta. Para dirigir o filme e estrelá-lo ao seu lado, convidou o amigo Dennis Hopper; e ele convidou Jack Nicholson, que teria dois papéis fundamentais no longa: como o advogado bebum George Hanson, que rendeu sua primeira indicação ao Oscar e fez sua carreira explodir; e, antes, o papel de intermediário com Bert Schneider, que financiaria o filme via BBS e se tornaria um produtor de obras independentes que revolucionaram Hollywood.

Easy Rider virou um marco da contracultura porque seus realizadores tiveram a capacidade de transmitir o seu estado de espírito e de toda uma era. As paisagens da América, suas tensões sociais e culturais, o movimento hippie, o consumo de drogas, um desejo de liberação dos costumes, enfim, todo o zeitgeist dos anos 60 foi ali sumarizado. O resultado disso foi a transformação de uma obra modesta de 400 mil dólares em um monumento de US$ 41 milhões em bilheterias. De quebra, o sucesso de Sem Destino desataria o cinema norte-americano das amarras do sistema da Era de Ouro, no qual os diretores não passavam de marionetes dos grandes estúdios, suas políticas rígidas e usual conservadorismo estético e narrativo.

Assim nascia a Nova Hollywood: uma onda inspirada na Nouvelle Vague francesa em que jovens cineastas muito próximos, ambiciosos e talentosos — como Steven Spielberg (Tubarão), Martin Scorsese (Taxi Driver), George Lucas (Loucuras de Verão) e seu mentor Francis Ford Coppola (O Poderoso Chefão) — se veriam livres para criar obras autorais, produções independentes e histórias mais arrojadas, dialogando com o cinema europeu de vanguarda, suas próprias vivências e vontades, o contexto sociocultural norte-americano e um fazer artístico essencialmente iconoclasta. Enfim libertos dos mandos e desmandos da Velha Hollywood, esses diretores criaram uma das maiores revoluções criativas da história dos Estados Unidos e, de quebra, definiram as bases do multibilionário cinema moderno, como a concepção de blockbuster, o aprimoramento do merchandising e licenciamento de produtos, a popularização de franquias cinematográficas etc.

O assassinato de Sharon Tate por Charles Manson

Um dos eventos fundamentais de Era Uma Vez Em… Hollywood, e bom que se conheça antes de assistir ao filme, é um dos crimes mais repercutidos da história do ocidente. Na madrugada de 9 de agosto de 1969, um grupo invadiu a casa alugada pelo diretor Roman Polanski (O Bebê de Rosemary) em Bel Air e assassinou sua esposa, a atriz Sharon Tate, que estava grávida, e mais quatro amigos do casal com requintes de crueldade. Os criminosos usaram o sangue das vítimas para escrever nas paredes a palavra “Pigs” (“porcos” em inglês), por exemplo. O rastro de sangue brutal continuou no dia seguinte, quando a mesma gangue arrombou a casa de Rosemary e Leno LaBianca, matou o casal e, dentre muitas barbaridades, voltaram a escrever palavras de ordem nas paredes. Dessas vez, as mensagens eram “death to pigs” (“morte aos porcos”), “rise” (“ascensão”) e “Helter Skelter”, apontando uma interpretação macabra das músicas “Piggies” e “Helter Skelter”, dos Beatles.

A chacina atormentou Los Angeles e os Estados Unidos para além da prisão de seus assassinos confessos: membros da “Família” de Charles Manson, que se tornaria um dos serial killers mais famosos do mundo. Com uma terrível história de vida pregressa e inteligência acima da média, Manson criou uma seita formada por jovens brancos que vivia de pequenos roubos, se alimentava de restos de comida e habitava o Rancho Spahn (um antigo cenário de filmes de faroeste cujo proprietário aceitou a “Família” em troca de sexo e afazeres domésticos) desde 1968. Charles cometeu vários crimes menores e possíveis assassinatos até o Caso Tate-LaBianca — do qual foi “apenas” mandante. Segundo o promotor do caso, a ideia de Charles Manson era atribuir os crimes aos negros, provocar uma guerra racial histórica e se abrigar do conflito em um poço sem fundo (!) no Deserto da Califórnia. Ao fim da guerra, Manson voltaria do deserto como grande líder. E toda essa alucinação ele diz ter extraído de mensagens subliminares contidas na música “Helter Skelter”.

O Festival de Woodstock

A contracultura se espalhou por todas as artes. Se a literatura da Geração Beat foi uma das grandes influências para o movimento hippie dos anos 60, a maior expressão artística desse sentimento de rebeldia contra o status quo na década foi a música. Mais especificamente, o rock’n’roll. E a grande celebração dessa arte foi o Festival de Woodstock, cuja realização completa 50 anos enquanto escrevo esse texto, 18 de agosto. Considerado desde então o maior festival de música de todos os tempos, Woodstock foi um fenômeno surpreendente até mesmo para os seus realizadores, que projetaram um evento para 40 mil espectadores e enfrentaram dificuldades para convencer as bandas a tocar no evento. Tanto que artistas como os Beatles, Rolling Stones, Led Zeppellin, Bob Dylan, Joni Mitchell, The Doors, Simon & Garfunkel e outros recusaram os convites para tocar no evento — tendo a maioria declarado publicamente seu profundo arrependimento após a realização e enorme repercussão da festa.

Tudo começou quando John P. Roberts e Joel Rosenman colocaram um anúncio no New York Times e no Wall Street Journal buscando ideias para investir seu capital. Michael Lang e Artie Kornfeld responderam com a ideia de um estúdio de gravação em Woodstock. O quarteto reunido transformou o projeto em um festival de música e artes ao ar livre (creio que pela possibilidade mais imediata de retorno econômico) em uma fazenda no interior do estado de Nova York. Com ingressos a US$ 18 (cerca de US$ 125 atualmente) vendidos antecipadamente em lojas de discos, região metropolitana de NY e por correio, o festival foi um sucesso imediato, vendendo 186 mil ingressos e transformando o risco financeiro dos realizadores em outra coisa: o risco de uma tragédia.

O alerta aumentaria com o início do festival: vias expressas congestionadas, pessoas abandonando seus carros e caminhando quilômetros para chegar ao destino, um êxodo de mais de meio milhão de pessoas e uma falta de ingressos que fez o público derrubar as cercas do evento, assim tornado gratuito. O mau tempo contribuiu para essa imagem do caos e a área enfrentou graves contratempos provocados pela superlotação, como o racionamento de comida e condições mínimas de higiene. Porém, a multidão presente na Woodstock Music & Art Fair foi imbuída do lema “paz e amor” do movimento hippie e a festa transcorreu sem maiores transtornos. Além da qualidade musical de um acontecimento marcado por apresentações lendárias de Janis Joplin, Joe Cocker e Jimi Hendrix, o grande símbolo do evento foi a sintonia de seus espectadores. “Se nos juntarmos a eles, poderemos vencer as adversidades que hoje são um problema para o país e ter a esperança de atingir um futuro mais pacífico e brilhante”, declarou o proprietário da fazenda em que aconteceu o festival, Max Yasgur.


Os Estados Unidos de Era Uma Vez Em… Hollywood

Em suma, os Estados Unidos do tempo de Era Uma Vez Em… Hollywood eram um país cindido em estado de ebulição. De um lado, uma nação vivendo o auge do capitalismo e seus signos: lindos carros passeando por largas ruas de cidades grandes ladeadas por letreiros luminosos, uma publicidade em alta descobrindo estratégias para transformar esses produtos em sonho, o advento da TV em cores (popularizada em 1966 com a Porta-Color da General Electric)... Enfim, uma sociedade de consumo gozando dos prazeres do sonho americano. Liderada por um governo que travava uma guerra por procuração no Vietnã e uma Guerra Fria com a União Soviética como forma de conter a expansão mundial do comunismo.

Por outro lado, os Estados Unidos assistiam atônitos à ascensão da contracultura. Uma revolta contra valores antiquados que reivindicava sua liberdade para viver como quisesse, solto das amarras do establishment, de todo o ideal capitalista norte-americano. Pacifista, esse movimento hippie usou o slogan flower power para se levantar contra a Guerra do Vietnã em paralelo às lutas pelos direitos civis dos negros, das mulheres e dos pobres — o que provocou uma série de conquistas sociais naquela década. Esse sentimento de rebeldia se estendeu por todas as áreas, inclusive para o cinema, desaguando em uma transformação: o antigo sistema de estúdio da conservadora Era de Ouro de Hollywood deu lugar a uma onda de jovens e ambiciosos diretores chamado Nova Hollywood, em que obras autorais independentes revolucionou a indústria de forma artística e até comercial. O Festival de Woodstock foi a grande celebração e uma espécie de canto do cisne desse movimento, haja vista o fato de, uma semana antes, o assassinato de Sharon Tate pela gangue de Charles Manson ter maculado a ideia de “paz e amor” do comportamento hippie e provocado um contra-ataque reacionário.

| Atenção! Spoilers a seguir!

Era Uma Vez Em… Hollywood tem esse título não é à toa. A frase característica dos contos de fadas antecipa a intenção de Quentin Tarantino: contar uma fábula sobre a indústria do cinema em Los Angeles no fim da década de 60. Assim, o cineasta realiza um filme que retrata esse período de efervescência conciliando os conflitos da época. É, portanto, uma imaginação que perverte a realidade, como todos fazemos ao realizar um recorte nostálgico: lembramos as coisas boas e escanteamos o que de ruim ocorreu no passado. O resultado é uma viagem idílica aos anos de 1968 e 1969, revisitando apenas a beleza daquele tempo magnífico, relegando seus conflitos a questões pessoais envolvendo seus personagens (principalmente Rick Dalton, cujo drama reverbera a tensão entre a Era de Ouro em que se estabeleceu como ator e a ascensão da Nova Hollywood, iniciada justo quando sua carreira entra em decadência). A grande tragédia daquela era? Tarantino transforma em um banho de sangue, sim, porém justiceiro, que salva a angelical e solar Sharon Tate da fúria de assassinos sombrios empunhando facas e revólveres — e assim o cineasta salva toda uma era. Como eu já disse na crítica, Era Uma Vez Em… Hollywood é o mundo ideal de Tarantino: um mundo em que a violência é plástica e moral, incapaz de degradar sua imaginação de um passado de que pouco se lembra, mas pelo qual tem enorme carinho e gratidão, e uma visão idealizada.

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