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Artigos

Coleção Cinema Trash: Jess Franco

Por Daniel Dalpizzolo e Heitor Romero

Considerado o pai do cinema B espanhol e um dos mais prolíficos realizadores do cinema, Jesus (ou Jess) Franco tem uma filmografia extensa, passeou por vários gêneros, mas ficou famoso pelo horror misto em erotismo que pontuou sua obra. Por não possuir o mesmo reconhecimento de um Tinto Brass ou um John Waters, seu cinema poucas vezes despertou o interesse de distribuidoras, mostras e restauradoras mundo afora, de modo que aqui mesmo no Brasil é pouquíssimo conhecido. 

Uma surpresa recente no mercado de home vídeo é a coleção Cinema Trash, da Obras-Primas do Cinema, que resgata e restaura quatro dos títulos mais importantes de Jesus Franco, realizados entre os anos 1960 e 1980. O conteúdo extra de mais de uma hora oferece entrevistas com o diretor, além de uma conversa com Stephen Thrower, um costumeiro colaborador de Franco e grande conhecedor de seu estilo e obra. Vamos conhecer abaixo um pouco de cada filme dessa seleção. 


Santuário Mortal (1969)

O encontro de Franco com um conto do Marquês de Sade e com o ator Klaus Kinski, já indica algo muito único e muito intenso. Cada qual desses três nomes carrega consigo todo um background que fala por si só. Some-se isso ao fato de Santuário Mortal ter recebido o maior orçamento da carreira de Franco e logo temos um filme dos mais estranhos do cinema. A interferência de produtores acarretou alguns cortes nos excessos típicos do diretor e do ator, mas ainda assim o resultado é dos mais chocantes. A Justine do título original sai de um convento junto de sua irmã Juliette e as duas se veem de repente abandonadas (ou livres?) no mundo. Enquanto Justine procura manter a castidade e o rígido código moral e religioso que lhe foram doutrinados desde criança, Juliette aproveita a liberdade nas ruas de Paris para literalmente se deixar desvirtuar. A via-crúcis de Justine é pontuada por todo tipo de situação e personagens que procuram corrompê-la. Numa conclusão amoral como só poderia ter saído da mente de Sade, fica claro que a própria religião alimenta tanto a virtude quanto a perdição do homem, trabalha sua moral e fé nas teorias bíblicas/cristãs, para logo em seguida mostrar na prática o quanto tudo aquilo pode ser hipócrita. O reencontro das irmãs é um dos momentos mais cruéis do cinema: Justine foi violentada de todas as formas ao lutar contra o “mal”, enquanto Juliette passou por situações muito próximas, mas sem que qualquer peso na consciência lhe impedisse de aproveitar o máximo possível. (Heitor Romero)


Ela Matou em Êxtase (1971)

Jesus Franco havia filmado história semelhante em Miss Muerte (1966), retomando-a aqui após o buzz em torno da vingança feminina de A Noiva Estava de Preto, dirigido pelo prestigiado François Truffaut, e escalando como protagonista sua musa Soledad Miranda, presente em três das quatro obras da caixa. Ela Matou em Êxtase reveste o mote vingativo com elementos estilísticos fundamentais da produção de Franco na transição entre os anos 1960 e 1970, que tornam o filme uma vigorosa porta de entrada para o cinema do diretor. Trilha-sonora psicodélica, fotografia clara banhada por muita luz e cores fortes, paisagens idílicas da costa espanhola, arquitetura suntuosa, movimentos de zoom inventivos, violência gore, exploração da nudez e uma apropriação do duo psicanalítico sexo/morte, acompanhando uma protagonista tímida e perturbada, mas capaz de seduzir facilmente suas vítimas e assassiná-las enquanto ardem em desejo por seu corpo. A trama pode soar mera convenção estrutural para as jams cenográficas do diretor, um esteta pervertido que abusa dos corpos femininos para construir imagens provocativas, mas os mais desatentos ou desinteressados podem perder detalhes fundamentais como o ato derradeiro de vingança, em que o personagem lentamente torturado e assassinado por Miranda é ninguém menos que o próprio Franco. Em tempos de policiamento autoindulgente e filmes produzidos sem a menor sinceridade, formatados para atender aos mais variados discursos extra-fílmicos, é maravilhoso retornar a um cineasta tão livre, frontal, honesto, e ao mesmo tempo consciente de seu destino por aceitar o desafio de dar forma às suas mais recônditas obsessões através da arte, independente do preço a pagar por isso. (Daniel Dalpizzolo) 


Vampyros Lesbos (1971)

Uma psicodélica versão lésbica de Drácula, de Bram Stoker, é a ousadia cometida por Franco em Vampyros Lesbos, talvez seu mais famoso filme. Tudo não passa de uma desculpa ou pretexto para uma literal imersão nas formas femininas, em intermináveis zooms e movimentos sugestivos com a câmera. O sexploitation de Franco, no entanto, tem uma noção de quadro, cores, luzes e formas que o destacam de um mero diretor pervertido atrás da realização de algum fetiche. Ele demonstra uma sensibilidade com a câmera muito próxima daquela que eternizou os diretores italianos que se aventuraram pelo giallo, gênero em que também há uma incansável exploração de sexo, morte e mulheres nuas, e nenhum compromisso com verossimilhança ou roteiro. É importante lembrar que, em 1971, na efervescência de um monte de tipos e escolas de cinema undergorund se formando, havia certa tendência na mistura de filmes de vampiros associados ao cinema erótico, uma herança direta da infame trilogia Karnstein. De alguma forma, o vampirismo sempre foi muito ligado à sexualidade tanto na literatura quanto no cinema, e o espírito libertário da época fomentou essa abordagem. Franco dizia não ter qualquer interesse particular em zumbis, vampiros ou qualquer outro monstro da moda, mas se rendia às tendências atrás de algum sucesso comercial, e por isso Vampyros Lesbos, a despeito de todo o status de cult que foi acumulando ao longo das décadas, não passa de um produto puramente picareta e de apelo comercial, mas com aquele charme trash que amolece o coração de qualquer verdadeiro fã do cinema de horror. (Heitor Romero)


Lua Sangrenta (1981)

É o filme da caixa mais diferente dos demais. Antes de tudo, por sua localização histórica e contexto de produção: Lua Sangrenta foi lançado durante o auge da onda slasher, no início da década de 1980, embora já debochasse do gênero com propriedade. Logo no prólogo, Franco incorpora e praticamente esgota/supera duas das ideias visuais que se tornaram pedras angulares do slasher, o ponto de vista subjetivo e o assassino mascarado, com um freak roubando uma máscara do Mickey durante uma festa à fantasia e assassinando uma garota depois que ela o recusa sexualmente. Passamos boa parte do filme acompanhando o esquisitão, anos mais tarde, às voltas de uma escola localizada em uma cidadezinha costeira, enquanto típicas intrigas sexuais do gênero se acumulam e garotas vão desaparecendo e morrendo uma a uma nos mesmos espaços que ele frequenta. Mas não poderia ser tão simples, e o filme vai adquirindo camadas cada vez mais malucas, até chegar a um terceiro ato que dilacera completamente a fórmula dos slashers, transformando nossas impressões sobre toda a trama. Mais uma vez, as qualidades de Franco como esteta resultam em uma coleção de planos muito bem imaginados, e a locação é excepcionalmente aproveitada para compor uma atmosfera que beira à fábula, concedendo ao filme um leve aspecto de delírio. Apesar de seu romance incestuoso bizarro, é também um trabalho menos provocativo tematicamente se comparado aos pares da caixa, mas não menos delicioso. (Daniel Dalpizzolo)   


A coleção Cinema Trash: Jess Franco já se encontra à venda nas lojas. Não deixem de conferir e não percam a oportunidade de conhecer um pouco sobre esse cineasta maldito. 

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