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Os zumbis de Romero

Do suposto vodu haitiano ao vírus social modernoso

Zumbis. O que diabos significam? De onde vieram? Insatisfação coletiva? Apocalipse? George A. Romero fora proeminente no cinema ao impor a crítica social em seus filmes, principalmente naqueles da temática zumbi, porém as origens históricas destes seres são bem diversas e mais antigas. Das mais variadas versões. Tem uma delas, das mais conhecidas, com que coaduno. Estes mortos são escravos modernos, usados para todo tipo de esculhambação. Historicamente, existem os zumbis provenientes do Haiti das tradições vodu, os quais personificam, de certa maneira, os escravos que vivem uma existência morta. Sem identidade ou futuro que não seja a sobrevivência atrás de comida. Vivendo nalgum local de desgraça, na qual só existe o resistir na pauta diária. Esta leitura tem sido feita propositadamente pelo ocidente desde a revolta de escravos que ocasionaria a independência do Haiti (1804), a primeira república negra livre, do Caribe e do mundo. Concordando aqui com Roger Luckhurst, que explicita a questão no seu artigo “As origens dos zumbis – e por que eles exercem tanto fascínio”, traduzido e publicado na BBC Brasil, 2015. Portanto a propaganda negativa feita por seus detratores era com o objetivo de deturpar aquele lugar, ainda mais com sua liberdade conseguida na porrada. Impô-lo como amaldiçoado. Claro, se não era dominado por brancos, logo era visto como escroto. A posteriori haveria uma invasão americana por lá, no que aumentaria o poder deste tema no imaginário coletivo.

O zumbi seria então um escravo dominado não somente pelos processos de mão-de-obra escrava, mas sim um dominado pela magia vodu do Haiti. Vertente do vodu africano, esta religião haitiana, com traços ancestrais do continente negro, era resistente à escravidão e ao controle cultural e religioso imputado anteriormente ao Haiti enquanto colônia francesa. Por este culto ser uma resistência, logo era tachado de maligno, algo a ser extirpado. Invocado que esta é uma percepção torta dos acontecimentos, por isso chamam de versão. Isto por que a escravidão fora levada em direção ao Haiti e o vodu existe como resposta, confrontação, ao jugo dos senhores de escravos. Ou seja, o ocidente cria uma mitificação de algo negativo que tem origem em suas próprias ações e de seus pares. Nada de novo no front, obviamente.

De fato, se formos buscar características destas figuras como escravos, encontramos a existência desgraçada, morta e sem perspectivas. De rotina repetitiva com um fim que não fora escolhido. E o tratamento deste suposto cadáver, como um objeto a ser destruído, sem tanta importância. Coisa que os senhores de escravos queriam afirmar aos escravos, o que era uma grande mentira, já que estas nações se ergueram com essa mão-de-obra. 

E como eles foram para o ocidente como comedores de carne? Através das permanências históricas. Que se metamorfoseiam, dobram linhas culturais, porém mantem parte da gênese criada. Por isso o zumbi, de escravo do vodu, passaria a ser um canibal nocivo, levando ainda em consideração o canibalismo sempre posto na pauta do preconceito ocidental diante de meios tribais. Ora, substitua este mesmo vodu, por radiação, vírus, meteoro ou qualquer coisa que o valha, tire-o da ilha haitiana, ponha numa localidade norte-americana e pronto. Taí o teu zumbi! São reverberações históricas que fazem parte dos processos de transição vinculados a quaisquer criações culturais. 

E o Romero nessa? Ele aproveitara o tema e criara uma conjuntura de condições e situações que vieram a servir de manual para não somente a temática citada, mas no horror apocalíptico como um todo. Obviamente ele é o responsável da criação e divulgação deste subgênero. Com uma estrutura opressora, caótica e pessimista carregada de crítica social embutida abertamente, sem muitos subterfúgios, num caráter revolucionário do horror, que é um gênero tão caro ao caráter crítico e sensorial do cinema.

A Noite dos Mortos Vivos (1968)

Material que serviu como introdutório popular ao tema, começando por estabelecer regras determinantes ao subgênero. O plot aqui prima pela simplicidade. Uma horda de figuras esquisitas quer se alimentar de carne humana, e aqui foca-se nalgum grupo que tenta resistir numa casa em pequena cidade do interior norte-americano. E é neste cenário escasso que o monstro da direção estraçalha. Com uma fotografia em preto-e-branco de excelência, acertando nos tons e na iluminação daquele espaço, que visa a manter a claustrofobia presente sem concessões. Desde os planos fechados, propondo as sensações dos personagens frente ao desastre, como na montagem acertada, que mantém as ações sempre tensas na medida que as criaturas chegam cada vez mais perto do seu objetivo. A destruição da carne humana. Tudo isso com uma trilha sonora num crescente absurdo, sem espaço de respiro nos momentos cruciais. Enquanto os planos fecham nas perspectivas de desespero, a trilha aumenta volume.

Se o defunto era uma espécie de escravo encalacrado numa mitologia negativa ocidental diante do vodu haitiano, o mesmo não se pode comentar do trato do chefia da direção com o protagonista da obra e do que significam os cadáveres da carne. Ben é um negro que toma conta da liderança das ações propostas da fita, tendo sua liderança questionada nesse misto de racismo operado com a loucura mediante a hecatombe. A paranoia tendo como válvula no preconceito. E os canibais? Estes são fruto dessa paranoia, pelo menos em nível conceitual diegético. Ora, os meios de comunicação discutem a origem sem resolução do que está acontecendo e pressupõem teorias que vão desde a esfera da radiação nuclear ao despertar desconhecido dos mortos. Não se tem ideia do que está rolando, mas a Guerra Fria está na pista, e nada mais óbvio do se discutir uma guerra nuclear.

A condição humana da incomunicabilidade. Isto parece absolutamente contraditório, já que vivemos em sociedade, porém, quando o escopo da destruição fica no teu front, a coisa muda. A sobrevivência passa por cima de qualquer anseio social que tenhas adquirido. Antes o individual do que o coletivo. Frente ao fim, quem pode nos julgar?

Despertar dos Mortos (1978)

Aqui, um manual dos filmes de zumbi. Se o primeiro abriria o tema no caminho do povão, este aqui funciona como uma obra de instruções de como lidar com a temática. Do cálculo imagético dos espaços e como seus personagens lidam com isso ao usufruto da violência e do humor negro ácido. Obviamente, sem esquecer das críticas sociais caras. Existe uma construção de atmosfera tensa desde o início. A hecatombe está na pista, sabe-se dos presuntos e do que os mesmos podem fazer, o lance agora é sobreviver. Não se confia mais num estado que provavelmente fora derrotado por carcaças. Direto. Sem explicações e repetições que ensejem o filme anterior. 

Romero explicita bem o preconceito de raça logo de início. A respeito de tempos de discussão de soberania de fronteiras e violência com imigrantes, o tema permanece atual. Há uma diferença lógica, e, obviamente, somos superiores. Os zumbis-mendigos. A falta de alimento das figuras errantes é um toque social genial. O desespero pela fome — a metralhadora do mestre está mais ativa do que nunca. Um ponto sobre o descaso do capital selvagem? Há espaço para a diversão. Para a esculhambação. Diversão é a matança dos rednecks, que atiram em tom de curtição nos mortos-vivos. Seriam os mesmos que creditam os zumbis na esfera cultural ao mal haitiano? A farra habitual do americano pelo tesão do morticínio animal também serve como carapuça nesta matança. O velho tesão do americano por armamento. Objetificação fálica do prazer. E tudo isso embalado pelos efeitos de maquiagem, e práticos, excepcionais do mestre Tom Savini em início de carreira. Em que se expõem vísceras e uma podridão escrota que choca pelo caráter de realidade imbricados a ela. Coisa de craque.

Zumbis de shopping. Crítica escrota ao consumismo, a mais direta possível da obra. O consumismo e a zumbificação via o espelho com os manequins; as criaturas se entreolham. Plástico e carne. Descrição das criaturas como instintivas, como se o vício consumista fosse não mais baseado em termos de livre-arbítrio, mas sim uma necessidade considerada intangível, inclusive indicando um local de farta presença anteriores dos indivíduos, já que os instintos são reconhecimentos das criaturas a locais de passagem e presença. Instintiva, naturalizada. Sarro de sua palhaçada alienada por figuras avacalhadas. Dominam o shopping. Importância da trilha tanto no usufruto da tensão no início turbulento, quanto na manutenção de crítica social com as musiquinhas de loja de shopping, com defuntos e humanos lutando por produtos inúteis e trocando ataques, de tortas na cara a tiros. Um tom de sarro ao macabro. A fuleiragem está solta!

Dia dos Mortos (1985)

Terceira parte da brincadeira de animais mortos-vivos. Continuidade dos problemas de produção com a direção tendo que se virar com o baixo orçamento, algo que traz a vantagem quase que unívoca de poder fazer o que quiser com o material. Com isto em mente, a violência come desenfreada, como sempre, e a crítica ao exacerbo de truculência do exército frente a variadas questões, como na sua hierarquia sanguinária usada como motivação de salvacionismo do todo. Civis inclusos. Perdidos na teimosia de seguir ordens de um estado que nem existe mais. Mas agem como se assim o fosse. Tudo isso junto com a loucura do isolamento, que traz perigo a todos nas ações inseguras e escrotas de personagens no limiar do transbordar da insanidade.

Decupagem mais frontal e objetiva, com uma fotografia que visualiza os compridos corredores e expõe planos abertos nas instalações, sem a claustrofobia vista antes e sem o toque de humor ácido do segundo. O negócio aqui é mais esculhambado e grosseiro. Com a maquiagem novamente de Tom Savini, numa proeminência do gore. O espaço é mostrado exatamente com este objetivo. Ter condições de suprir um tesão pela violência e grosseria, coisa que a década de 80 oferecia bem, Romero adapta isso de forma direta. Sem deixar de dar uma pincelada crítica na putaria que isto traz a reboque.

Mundo devastado com poucas opções. Uma delas é a busca pela reversão do processo. Como curar aquelas criaturas? Ou como domesticá-las? Ora, melhor um escravo obediente que um zumbi canibal. Sempre é mais divertido controlar que combater. Os limites da ciência? Ora, se já não se medem esforços em determinadas questões com direitos assegurados, avalie aí quando a barbárie está cada vez mais presente. Sem amarras morais, esticamos a baladeira e vamos em busca de todos os objetivos escusos. Podemos.

Romero tinha a ideia de fazer um filme de zumbi por década, usando da crítica social afrontando cada geração. No primeiro, o problema de sociabilidade humana frente a problemas diversos e a sobrevivência instintiva está acima de tudo, algo que se repete nos outros filmes em níveis diferentes. O segundo tem a óbvia e ultracitada crítica ao consumismo na ingerência do subconsciente para permanecer em locais de consumo. O último foca no militarismo exacerbado como solução. Numa década de conflitos. A exposição de cadáveres ambulantes servia aos propósitos críticos do diretor. Os escravos modernos da cultura pop, com a serventia da revolta, que avacalhara os anseios humanos primordiais de sociabilidade, superioridade de raça, consumismo e militarismo. O “american way of life” fora defenestrado. 

A inquietação dos zumbis como doença social? Ou seriam agentes do caos, com a intenção de estabelecer a desordem, não para explicar, mas para confundir. O vodu, sim, este não é confuso pra galera. Ele é ruim no seu nascedouro social na cabeça de muitos. Nada mais justo que os cadáveres existam no que tange a corrigir, e frescar, com as condicionantes sociais estabelecidas. Principalmente aquelas que mais nos confortam. As que tantos outros não tem acesso. Aquelas que os fodidos não chegam perto, que os escravos nunca chegaram. Nisso os zumbis são coerentes. Na hora do bagaço, o negócio é abarcar a carne.

Texto integrante do Especial Monstros no Halloween

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