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Qualquer gato vira-lata

Sejam eles mimados ou independentes, confiáveis ou traiçoeiros, boêmios ou caseiros, carinhosos ou desconfiados, os gatos tiveram toda sua psicologia e sociologia abordadas nos versos dos adoráveis poemas infanto-juvenis que o poeta americano T.S. Eliot escreveu nos anos 1930, reunidos no livro Old Possum’s Book Of Practical Cats. Seus personagens são dotados de características humanas, mas ao mesmo tempo são todos construídos em cima dos traços mais simbólicos do universo felino, de modo suas aventuras pela noite nas vielas londrinas são narradas de maneira ao mesmo tempo cômica, emocional e muito próxima da realidade que qualquer pessoa que conviva minimamente com qualquer gato em casa ou de rua é capaz de reconhecer.

A delicadeza e a comicidade dos versos de Eliot serviram de inspiração para que o dramaturgo e compositor britânico Andrew Lloyd Webber criasse no início dos anos 1980 o musical da Broadway Cats, sucesso absoluto que permaneceu em cartaz por inacreditáveis 18 anos nos palcos americanos e 21 anos em Londres. Webber encontrou facilidade para sonorizar os versos de Eliot e transformá-los em canções e números musicais devido à característica dançante e bem ritmada dos poemas originais, e a aceitação do público e crítica foi imediata, o que resultou em 7 prêmios Tony (o Oscar do teatro americano) em sua produção de estreia, incluindo a estatueta de melhor musical.

Parte dos números musicais criados por Webber se inspiraram em outros poemas que Eliot criou fora de Old Possum’s Book Of Practical Cats, incluindo Memory, a mais famosa canção de Cats, que foi baseada no poema solo Rhapsody on a Windy Night. Até mesmo poemas nunca publicados por Eliot foram usados, entre eles o responsável por apresentar uma das protagonistas desse universo, Grizabella, que teve sua participação cortada dos livros dos gatos original por ser considerada uma personagem muito melancólica para o público infantil. O poema Grizabella: The Glamour Cat ganhou vida somente sob os cuidados de Webber, que amarrou a personagem ao universo de Cats, assim como era a vontade de Eliot à época da publicação de seu livro.

Passado o sucesso da peça e a consagração dos poemas, Cats finalmente chega às telonas nesse mês sob a direção de Tom Hopper, que também já adaptou para o cinema outro musical de sucesso: Os Miseráveis (Les Misérables, 2012). O Cineplayers elaborou então um guia de personagens para você saber o que esperar desse novo musical que promete chegar com tudo nessa temporada de premiações.

O universo de Cats

A narrativa de Cats é na verdade bem simples, ambientada em Londres, em uma sucessão de apresentações dos personagens que se revelam sobre o Baile Jellicle, um ponto de encontro de uma tribo de gatos de rua autodenominada Jellicles, no qual ocorre um processo de seleção dos felinos a serem escolhidos para passar para o outro lado, o Heaviside Layer. Esse lado nada mais é que uma espécie de céu, que abriga os escolhidos e os permite renascer em uma nova de suas setes vidas. Journey To Heaviside Layer é a canção que embala esse ritual. O narrador e protetor da tribo Jellicle, Munkustrap (Robbie Fairchild nessa nova versão para o cinema), explica que O Velho Deuteronômico (Judi Dench), uma espécie de gato sábio e antigo, fará a seleção. Inicia-se então o desfile dos gatos que ambicionam a passagem para o outro lado. Abaixo, um resumo de cada um dos principais personagens:

• Jennyanydots, a Gumbie Cat (Rebel Wilson)

Nos versos de Eliot, Jennyanydots é uma gata preguiçosa e dorminhoca que passa o dia todo estirada nos degraus das escadas descansando, mas que à noite se revela o oposto e gosta de trabalhar e faz amizade até mesmo com os ratos. No musical, seu número solo envolve sapateado e é um dos mais bem-humorados da peça.

• Rum Tum Tugger (Jason Derulo)

Descrito por Eliot como um gato que gosta de ser do contra, fazer tudo para contrariar o que lhe dizem ou impõem, Rum Tum Tugger gosta de mostrar que é independente e autossuficiente, e às vezes o que gosta mesmo é apenas de se mostrar. No musical de Webber, ele é também muito desejado pelas gatas da tribo e ganha um parentesco com Munkustrap, seu irmão mais e velho e responsável. Sua concepção visual para a peça da Broadway se inspirava nos trejeitos de Mick Jagger, vocalista da banda The Rolling Stones.

• Grizabella, a Gata Glamourosa (Jennifer Hudson)

Grizabella é uma das personagens mais ricas do universo de Cats. Embora tenha um poema próprio na obra de Eliot, ele nunca foi publicado, de modo que Webber a trouxe para o time principal quando adaptou para os palcos, ao incluir sua história de filha pródiga. Memory, o mais famoso número musical da peça, é performado por Grizabella, que em sua juventude era conhecida por seu glamour e beleza, mas decidiu deixar a tribo. Agora velha, retorna procurando ser novamente aceita, mas é tratada por todos como uma traidora, causando repulsa especialmente em Bombalurina e Demeter. É a personagem que mais exige preparo vocal, e na versão para o cinema é vivida por Jennifer Hudson.

• Bustopher Jones (James Corden)

De polainas brancas e casaco preto, Bustohper Jones é pintado por Eliot como um gato elegante que gosta de ostentar a boa vida, anda de focinho empinado, mas também impressiona por estar ganhando muito peso e muito rápido. Pertence à alta sociedade e é muito querido e admirado por todos. No musical, Webber mantém essa característica de dândi e troca as polainas brancas por um charmoso smoking felino.

• Mungojerrie (Danny Collins) e Rumpleteazer (Naoimh Morgan)

Uma dupla de gatunos traiçoeiros que é conhecida por todos e ludibria a todos. Nos versos de Eliot, os dois gostam de invadir as casas e furtar comida, mas são descritos também como pertencentes à uma família humana de Kensington, que vive em apuros quando eles roubam o almoço de domingo. Parceiros de crime, performam um dueto de jazz muito divertido na adaptação teatral. Mungojerrie também é mencionado no poema de Macavity como um possível aliado de seus crimes. Rumpleteazer, embora descrito como um gato macho nos poemas, é tradicionalmente interpretado por uma atriz para um bom contrates nos duetos.

• Macavity, o Gato Misterioso (Idris Elba)

Não é preciso a Scotland Yard averiguar a cena do crime para saber que Macavity está por trás de tudo, mesmo que ele já tenha sumido de lá sem deixar rastros. Uma mente criminosa descrita por Eliot como demônio em forma felina, Napoleão do crime e Hidden Paw, ele tem a pelagem ruiva e foi inspirado no Professor Moriartly, personagem de Sir Arthur Conan Doyle, de quem o autor era fã. Sofisticado, é o vilão da trama, que rapta o Velho Deuteronômico e causa a maior parte dos conflitos da história.

• Gus, o Gato do Teatro (Ian McKellen)

Vive na porta do teatro e não à toa. Gus é um ator experiente que já viveu diversos papéis em seus anos de juventude nos palcos. Magro, de pelo ralo, gosta de beber com os amigos e relembrar seus dias de glória. Seu verdadeiro nome é Aspargus e sua habilidade com a pantomima é notável. Vale lembrar que também foi inspirado em um personagem de Sir Arthur Conan Doyle, o infame Coronel Sebastian Moran.

• Growltiger (Ray Winstone)

Caolho, com um pedaço da orelha faltando, trajando roupas esfarrapadas, vivendo numa barcaça, Growltiger é um pirata mau-caráter que persegue os felinos mais fracos, além dos ratos e passarinhos, vive na boemia da noite e nutre um ódio especial por gatos siameses. Em seu poema, passeia pelo rio Thames espalhando terror e se mostra apaixonado por Lady Griddlebone, com quem divide um dueto na adaptação musical.

• Griddlebone (Melissa Madden-Gray)

As origens e particularidades de Griddlebone são escusas, visto que não aparece em um poema solo e só é mencionada nas aventuras de outros personagens. Enquanto é tida como uma dama elegante aos olhos de Growltiger, é também mencionada como uma aprendiz de maldades de Macavity no poema do vilão. No musical de Webber, é tida como o interesse romântico de Growltiger.

• Bombalurina (Taylor Swift) e Demeter (Daniela Norman)

Bombalurina e Demeter são duas personagens importantes na peça, mas que são apenas rapidamente mencionadas no poema de abertura de Old Possum’s Book Of Practical Cats, chamado The Naming os Cats, que fala sobre a identidade dos gatos e seus vários nomes: os dados pelos donos, os convencionais e os nomes únicos (e super estranhos) que só os gatos podem se dar. Enquanto Bombalurina é um desses nomes singulares, Demeter é sugerido pelo autor como um nome sofisticado que um gato talvez venha a ganhar de seu dono, assim como ocorre com Alonzo e Plato. Na peça de Webber, no entanto, as duas ganham maior espaço. Bombalurina é jovem e gosta de flertar, em especial com Rum Tum Tugger, que não lhe corresponde o sentimento; é confiante e muito traiçoeira, e nutre grande ódio por Macavity, além de não simpatizar com Grizabella. Demeter, uma gata já adulta e madura, é sua melhor amiga e participa de quase todos os seus números musicais, e também se mostra figura de oposição a Macavity e Grizabella.

• Sr. Mistoffelees (Laurie Davidson)

O famoso clichê do gato preto rodeado de superstições, Mestre Mistoffelees é descrito por Eliot como o Gato Mago Original, com supostos poderes mágicos e capaz de criar muitas ilusões e prever o futuro. Seu nome é claramente inspirado no mito do demônio Mefisto, mas sua índole é pacifica e boa no universo de Cats, agindo como um showman a comandar os muitos números musicais com seus truques e habilidade de entreter a plateia.

• Victoria, a Gata Branca (Francesca Hayward)

Embora apenas mencionada rapidamente nos poemas de Eliot, sem grande ênfase, Victoria foi alçada ao posto de protagonista central na obra de Webber, surgindo como uma jovem gatinha tímida que impressiona por sua pelagem alva e habilidades de dança. Protagoniza um longo número musical de dança que é tido como um dos mais incessantes e difíceis da história do teatro. Por outro lado, não tem um número solo de canto. É uma das poucas que optam por perdoar Grizabella e aceitá-la de volta na tribo. Sua jornada em Cats é, a despeito das tramas paralelas e dos demais personagens, um trajeto de chegada à vida adulta e amadurecimento.

Cats na literatura

Preparado para essa aventura musical noite adentro com os felinos mais boêmios que se tem notícia? Vale lembrar que O Livro dos Gatos Sensatos do Velho Gambá (título nacional de Old Possum’s Book Of Practical Cats) é uma raridade no mercado editorial do Brasil, devido as suas polêmicas traduções para o português, que nem sempre foram bem vistas pelos fãs. Mas se houver interesse em explorar o texto traduzido e o original, a Companhia das Letras tem em estoque uma coletânea bilingue dos poemas de T. S. Eliot, incluindo o livro dos Gatos completo e o poema Rhapsody on a Windy Night, com tradução e notas de Caetano W. Galindo. É uma pena que a edição não inclua os textos não publicados de Eliot, ficando de fora justamente Grizabella: The Glamour Cat, mas ainda assim vale a pena conhecer e poder comparar as versões originais com a tradução e adaptação da obra para o português.

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