Saltar para o conteúdo

Artigos

Trilogia De Volta Para o Futuro - 25 anos

Dia 26 de outubro de 1985, pouco mais de uma hora da manhã: um moleque e um cientista maluco estão no estacionamento de um shopping prestes a dar início a uma das viagens mais surtadas e divertidas do cinema. Foi há 25 anos.

Apesar de ser sem dúvida uma saga de aventura menor e menos popular que muitas outras de 1977 pra cá, a Trilogia De Volta Para o Futuro mantém fãs até hoje e guarda uma iconografia que está entre as mais marcantes destes mais de 100 anos de cinema, além de ser um fenômeno único tanto da narrativa quanto da mise-en-scène em níveis jamais sequer arranhados por Peter Jackson, George Lucas, Gore Verbinski e o próprio Spielberg. É pra falar destes elementos, e muito mais, que vamos acelerar agora a 88 milhas por hora!

Pra onde vamos? Ah... uns 30 anos.

A Parte I

— Você fez uma máquina do tempo!... com um Delorean?

De Volta Para o Futuro I é perfeito; o tipo de resultado que só se consegue com uma rara mistura de talento e acaso, pois conscientemente uma pessoa só não consegue arquitetar nada parecido. Depois de anos escrevendo e reescrevendo o roteiro, ouvindo “não” de estúdios (incluindo a Disney que achou o filme “pesado”, e não era um problema com a força gravitacional), Zemeckis e Bob Gale deram a si mesmos uma última chance para fazer a fé de Steven Spielberg nos dois valer a pena (de Zemeckis, Spielberg já havia produzido Febre de Juventude [I Wanna Hold Your Hand, 1978] e Carros Usados [Used Cars, 1980]: dois fracassos).

A partir daí, a mão de Spielberg para tomar todas as mais importantes dentre as mais insignificantes decisões e a influência surpreendentemente positiva de um alto executivo da Universal (Sidney Sheinberg), somadas ainda a uma providencial restrição orçamentária, fizeram de De Volta Para o Futuro o filme que nenhum fã consegue imaginar diferente em qualquer mínimo detalhe. Coisas como a vontade de Gale e Zemeckis de fazer do mascote de Doc Brown um macaco ao invés de um cachorro, e de a máquina do tempo ter sido inicialmente imaginada em uma geladeira, desafiam o bom senso.

A verdade é que parecia determinado que De Volta Para o Futuro (Back to the Future, 1985) deveria dar certo exatamente porque, para todos os efeitos, não deveria em hipótese alguma. A ideia é quase impraticável. O que mais impressiona é olhar para a quantidade absurda de informação essencial que precisa ser administrada para que o filme funcione. Antes de mais nada, a Parte I deve cumprir a sempre complicada tarefa de introduzir uma mitologia. Se pensarmos nos filmes de Indiana Jones e Star Wars, por exemplo (e nestes que são pai e mãe do cinema comercial contemporâneo), Spielberg se apropria da iconografia já pronta das matinês da primeira metade do século e Lucas simplesmente mete um letreiro sem-vergonha na tela. Zemeckis, mesmo apesar de ter retificado ao longo da carreira se tratar apenas de um diretor razoável, pega a primeira cena e já se vale de uma das lições mais preciosas de Hitchcock, deixando a câmera falar numa sequência que lembra de cara a introdução de Janela Indiscreta (Rear Window, 1954).

Mas especial mesmo é a cena do jantar em 85, onde Gale e Zemeckis conseguem em poucos minutos fornecer tudo de que os próximos 90 precisam para transcorrem com uma simplicidade assombrosa. É uma quantidade racionalmente inaceitável de informações para sustentar a suspensão de descrença e fazer o público aceitar de forma natural um enredo que, se descrito, é de enlouquecer quem planeja filmá-lo (falando sério, tente repassá-lo na cabeça. Eu ia transcrevê-lo pra cá, mas desisti).

Para que esse caos todo funcione, Gale e Zemeckis não permitem que uma única vírgula dessa introdução esteja fora do lugar. Há um minimalismo inconcebível nesses 20 minutos que antecedem a viagem a 55, onde não sobra frase, palavra por palavra, que não contenha uma informação fundamental ao filme (sem deixar de ter, também, sua função imediata). Como um liga-pontos, cada elemento dessa primeira parte encontra seu eco correspondente mais tarde. É preciso imaginar o roteiro de De Volta Para o Futuro como um mapa ou a planta de uma usina, sendo ainda mais incrível que a Parte I — mesmo correndo o risco de cair no didatismo vicioso e passar a maior parte do tempo tentando explicar a si mesma — seja a de ritmo mais clássico e elegante, de timing absolutamente perfeito. É um milagre narrativo.

Apesar de tudo, porém, De Volta Para o Futuro nunca foi realmente um filme sobre viagem no tempo. Zemeckis e Gale admitem que o estalo que deu origem ao roteiro foi a pergunta “como seria viver na época dos meus pais?”, enquanto Gale olhava fotografias. A viagem no tempo em De Volta Para o Futuro é acima de tudo uma viagem sentimental, e a porção sci-fi do filme é mero pretexto até então.

Basta observar como os anos 50 são romantizados por Zemeckis, vistos sob um misto de nostalgia e fábula, recriados mais com base no coração do que em uma pretensão documental. A declaração de Zemeckis, afirmando que primeiro filmou as cenas em 55 para depois “sujar e destruir” a cidade para os anos 80, deixa algo muito claro: De Volta Para o Futuro é um filme emotivo e saudosista como poucos; ainda que esta saudade não seja autêntica, ainda que essa Hill Valley 55 seja apenas o retrato de um tempo fruto mais da fantasia que de uma lembrança legítima, apenas um lugar perdido entre a memória e a imaginação (exatamente como ocorre mais tarde, com o velho oeste).
 
O presente oitentista, sujo e decadente, porém, não é em momento algum objeto de que Zemeckis se serve para lançar críticas e transmitir mensagens inúteis. Tudo que ele extrai da situação é uma ironia que cumpre sua função primária de humor, simplesmente. O resto que vier é lucro, como quando Marty retorna a 1985 (30 anos numa elipse genial, aliás), olha em volta, e fica feliz em ver que os lugarzinhos românticos de antes se transformaram em igrejas evangélicas e cinemas pornográficos, e que o antigo prefeito agora dorme feliz no banco da praça da cidade.

Mesmo apesar de ter sido idealizada sem a intenção de sequência, a Parte I não poderia ser uma matriz mais rica para a trilogia. Afinal, De Volta Para o Futuro é tão mas tão bom que as Partes II e III, com toda a razão, não fazem mais do que repeti-lo.

Great Scott!: Marty inventa o rock’n’roll

Começando aqui, vamos escolher um momento especial de cada filme que vale ser destacado. Nesse caso, tinha como ser outro? Na verdade, é claro que sim. Inclusive falei de outros ao longo do texto. Poderia ser qualquer um, não interessa, mas Marty tocando Johnny B. Goode é sem dúvida apropriado. A cena é especial por se tratar talvez do único momento em toda a trilogia a não cumprir também uma função narrativa. É claro, temos aqui um nó que se ata com a audição da banda do Marty (The Pinheads) lá no início do filme (“Nunca vou ter a chance de tocar na frente de alguém...”), mas que só está lá em um primeiro momento, se não para apenas ilustrar a conexão entre Marty e George (“Se você usar a mente, pode conseguir qualquer coisa.”), para provocar este momento puramente apoteótico em benefício do qual Zemeckis faz questão de frear a progressão do filme e dizer ao espectador para que se recoste e aproveite.

A Parte II

— Não vai acreditar! Temos que voltar para 1955!
— Eu não acredito!

Se eu disse que a Parte I não é realmente um filme sobre viagem no tempo, é porque me referia a esta pérola aqui. Se há um minimalismo inconcebível em arranjar tudo para que funcione organicamente na Parte I (um pepino do tipo que qualquer roteirista experiente contra-indicaria), a Parte II vai além e se mostra um devaneio ainda mais impossível de Gale e Zemeckis. Eu queria estar presente quando eles explicaram a um terceiro pela primeira vez o que estavam imaginando para o filme (depois de a ideia original ter se tornado inviável pela ausência de Crispin Glover).

Em um nível mais técnico, é pouca ousadia afirmar que De Volta Para o Fututo II se trata na verdade do único filme sobre viagem no tempo que existe. Afinal o filme, literal e efetivamente, viaja no tempo de volta à Parte I.

Para desafiar a elegância impecável do primeiro e a cadência romântica do terceiro, De Volta Para o Futuro II (Back to the Future II, 1989) surta e engrena um ritmo inclassificável. A correria é tão grande que a Parte III precisa descansar do filme anterior (não por acaso, ela começa com os personagens todos desfrutando de uma agradável noite de sono).

Se imaginarmos a trilogia inteira como um único filme, normal, em três atos, a Parte II nada mais é que um “meio” perdido entre início e fim. Não há a necessidade de introduzir a mitologia da série (missão cumprida pelo primeiro filme), apenas se divertir com ela; e também não há a necessidade de concluí-la, nem de amarrar ponta nenhuma. Metade dos espaços abertos pela Parte II são ignorados para serem resolvidos apenas pela Parte III. Não há imbróglio dramático, não há o elemento romântico (presente nos outros dois filmes), sequer há de fato uma trama, apenas um McGuffin condutor (o almanaque) como pretexto para, aí sim, fazer um filme de ação com viagens no tempo — porque De Volta Para o Futuro II não é nada além disso, e por isso é o melhor da série.

São diferenças desse tipo entre as três partes que mais enriquecem a saga (nenhuma trilogia é composta de filmes tão distintos uns dos outros). Porém, por maiores que sejam essas diferenças, e por melhor que cada filme fique quando analisado independentemente do outro, são as profundas ligações narrativas que de certa forma proibem que eles sejam vistos deslocados de seu contexto (mesmo quando falamos apenas do primeiro, como já dito, feito sem intenção de sequência). Zemeckis filmou uma epopeia indissolúvel que não apenas trata de viagens no tempo, mas que as realiza narrativamente, ligando um ao outro de modo que cada um fique incompleto sem o seguinte ou o anterior. Pode até ter começado como uma brincadeira, mas as referências internas desempenham uma função que vai muito além de preencher o tempo de nerds desocupados com fetiche por easter eggs.

A ideia de uma narrativa circular (por coincidência abordada também no artigo anterior sobre Fritz Lang), e de que as duas pontas do universo se amarram em algum lugar, está representada por cada sensação de déjà vu que Zemeckis transmite reproduzindo cenas e elementos do primeiro filme nos dois seguintes. A principal ocorrência é a perseguição na praça, em 2015, na Parte II. A frase do Biff, dita com uma melodiosa e significativa estranheza, resume muito bem o objetivo de Zemeckis: “Parece que eu já vi isso acontecer...”. Pura mágica; tudo sob o testemunho onipresente do relógio da torre.

Em De Volta Para o Futuro II, não apenas parece que vemos as coisas acontecerem novamente como de fato as assistimos acontecendo, de novo e por outros ângulos. A mise-en-scène de Zemeckis faz uma espécie de raiz quadrada do cinema e aplica filme sobre filme dobrando-o em torno dele mesmo. Ou seja, é o próprio De Volta Para o Futuro que encontra o seu “outro eu” na Parte II.

A brincadeira dá a Zemeckis a oportunidade inédita de explorar alguns dos tempos mortos do primeiro filme, como Biff saindo para buscar o carro na oficina na manhã de sábado e depois indo até o baile, ou Doc Brown instalando os cabos no relógio da torre antes da tempestade. Até alguns momentos ocultados na edição da Parte I acabam aparecendo aqui, como um pequeno trecho da cena de Marty e Lorraine no carro, quando ela diz que, quando tiver filhos, vai deixá-los fazer tudo que quiserem.

Mas o momento que melhor resume o fenômeno (e como Zemeckis soube explorá-lo para além de uma mera curiosidade) é a cena de Marty tocando Johnny B. Goode, reconstruída toda sob outro ponto de vista. Não apenas vemos os dois Martys ao mesmo tempo como a própria cena original é torcida de modo a cumprir uma função completamente diferente da primeira vez, e esta fusão é obtida por Zemeckis quase como se ele já soubesse que faria tamanha loucura 5 anos mais tarde. Pegue com atenção o final da cena, e como a música, antes objeto em primeiro plano, agora funciona como uma trilha que apenas adorna a ação correndo nos bastidores. Um belíssimo exercício de perspectiva.

De 85 a 2015, a 85A, a 55 e a 1885. Tudo em uma hora e meia. Passamos por três Hill Valleys, três versões diferentes dos personagens, e em cada um destes ambientes temos de resolver conflitos distintos (que renderiam filmes independentes se desenvolvidos em uma velocidade normal). Partimos literalmente do final de um outro filme e somos entregues no início de um terceiro. Essa porralouquice toda é De Volta Para o Futuro II.

Great Scott!: A carta

 

Talvez o insight mais genial dentre os três filmes. Jamais vou esquecer a primeira vez que vi o Delorean atingido pelo raio desaparecer, a trilha e os sons da tempestade cessarem para um silêncio arrepiante preencher a tela, e um homem misterioso de chapéu e sobretudo aparecer no meio da chuva. É uma das expectativas mais deliciosas que se pode experimentar em um filme durante aqueles poucos passos entre o carro no meio da estrada e o Marty, ensopado e ainda em choque.

O final da cena é um dos momentos mais “hell yeah!” da trilogia. O cara dos correios pergunta se há algo que ele pode fazer, se o Marty precisa de alguma coisa. Marty se vira e responde: “só há um homem que pode me ajudar”, aí Zemeckis surta e nos leva de volta ao primeiro filme (um corte inacreditável e inédito), com Doc Brown pendurado nos ponteiros do relógio da torre e a trilha de Silvestri estourando nos ouvidos. Extasiante.

A Parte III

— Isso é um assalto?
— (...) É uma experiência científica!

É unanimidade entre os fãs: a Parte III é o filme mais fraco da trilogia. Alguns chegam a considerá-lo ruim. Eu mesmo já vi um degrau proeminente entre ele e os dois anteriores por muito tempo, mas a verdade é que, mesmo não gostando tanto dele, deve ser feita uma generosa reverência à ousadia de De Volta Para o Futuro III (Back to the Future III, 1990); em alguns aspectos, mais radical até que a própria Parte II.

Se o primeiro filme é perfeito e se o segundo já parte de um insight genial, em teoria, nada sobra ao terceiro. Porque veja bem, as Partes I e II são naturalmente cativantes, o problema com elas era exatamente a execução (tirar estes dois filmes do papel com a excelência que Zemeckis atingiu foi sem dúvida uma das coisas mais difíceis realizadas no cinema do século XX, e pensei bem antes de escrever isso). A Parte III, a princípio, apresenta-se mais simples que as anteriores pelas referências de que se apropria.

É comum a ideia de que o tributo do filme ao gênero se limita tão somente à reprodução de uma cena aqui e ali, ao cenário, a um ou outro elemento, quando na verdade as referências começam desde o icônico, passam pela trilha e penetram no mais íntimo movimento da narrativa. Diferentemente dos dois primeiros, que foram simplesmente inventados num momento de inspiração mediúnica, os caminhos aqui já estão abertos. Desde o desenvolvimento romântico (completamente atípico — pra não dizer “inédito” de novo — no primeiro filme) até a evolução da oposição entre vilão e mocinho: tudo trazido, se não integralmente do western, sem dúvida do cinema americano de gênero. Não é algo para fãs apontarem o dedo histéricos gritando “ó lá! É o chapéu que o John Wayne usou em Rastros de Ódio!”. De Volta Para o Futuro III veste o gênero da cabeça aos pés, porque uma referência gratuita seria muito pouco para Zemeckis.

A Parte III contorna o intervalo delirante que é a Parte II e abraça o primeiro filme numa sequência de curvas e repetições que sempre acaba nos levando de volta ao mesmo ponto, ainda que em uma volta diferente dessa espiral. De Volta Para o Futuro III é, por absurdo (e também um pouco genial) que isso pareça, um remake de De Volta Para o Futuro.

Como já dito, o primeiro filme revela uma forte ligação com o lado nostálgico americano pela década de 50. Uma lembrança da infância é sempre imprecisa, sempre expõe lacunas preenchidas não necessariamente pela verdade dos fatos mas pela imaginação tendenciosa que nos força a um otimismo exagerado, mas confortável. Para Zemeckis, nesse misto de memória e fantasia, a ficção e a realidade nos anos 50 parecem se confundir como se, dobrando a esquina num posto Texaco ou entrando numa loja com The Unforgettable na vitrine, Monument Valley surgiria dourada e exuberante, feito uma prostituta, com índios sendo perseguidos e homens carrancudos a cavalo.

No que diz respeito à cultura pop americana, o velho oeste e os anos 50 estão próximos de tal modo que conectá-los é tão banal quanto atravessar a rua; são frente e verso da mesma moeda, por isso a Parte III nada mais é que o lado B do primeiro filme. Pela nostalgia e pela mítica, não faria sentido nenhum separar o que sempre pareceu representar uma coisa só.

Se na Parte I a viagem de volta aos anos 50 vinha de uma motivação puramente saudosista, a reprodução do velho oeste entra para completar o fetiche nostálgico de Zemeckis e Bob Gale, ambos nascidos em 51 e, portanto, crianças durante a década de 50 e o auge do western. É quase uma questão de coerência, ou como diz o próprio Doc Brown, é “apropriado” que a trilogia visite o velho oeste.

Desta vez, o filme é livre para ser composto não da memória empírica de Zemeckis, mas dos filmes que ele viu na infância. A lembrança se alia não apenas à imaginação, mas também à ficção assumida, e o velho oeste é observado através da lente da própria década de 50.

Ou seja: Marty jamais chega realmente a sair dos anos 50 nem a viajar a qualquer ponto do tempo, ele viaja é para dentro do próprio cinema; no caso, para um bang-bang ainda sob a sombra do imaginário da década (por ser, indissociavelmente, o imaginário de seu criador). Zemeckis fez questão de dizer isso ao espectador logo no início da Parte III. Observe a cena em que Marty viaja a 1885, acelerando a 88 milhas e entrando na tela de um drive-in, fazendo com que os índios pintados em uma painel se transformem em índios de verdade: realidade e fantasia fundindo-se uma na outra.

Great Scott!: The End

 

Zemeckis não repete apenas planos e sequências, seria explorar pouco a temática de De Volta Para o Futuro. Algo que ecoa nas três partes da trilogia e não tem a ver com a reprodução de uma cena específica é o suspense usado através da perspectiva de perda de Doc Brown: no primeiro é a morte ainda em 85 (que dura o filme todo), no segundo é o Delorean atingido por um raio (nesse caso, a morte a ser revertida é a do pai de Marty); já no terceiro, há dois: o tiro por causa de 80 dólares, e a destruição do Delorean pelo trem (numa brincadeira semelhante, aliás, à do painel dos índios no início do filme). Por mais em comum que tenham estes momentos, porém, nenhum deles é solucionado de forma tão cativante quanto aqui, quando Doc reaparece com a locomotiva e a perspectiva de “final feliz” da trilogia é infinitamente amplificada (além de fechar o círculo, já que no primeiro é o presente do Marty que é alterado pra melhor; aqui, o de Doc).

E já que tudo é cíclico, que tudo começa e termina num mesmo dia (o 26 de outubro), que a história não faz mais que se repetir e se repetir, é natural que a última cena da Parte III se amarre à última cena da Parte I, afinal, a máquina do tempo levantando vôo e vindo de encontro ao espectador é o único final que De Volta Para o Futuro conhece (a Parte II não tem final nenhum, lembra?).

- Christopher Lloyd

O roteiro da Parte I é absurdo. Absurdo em seu conceito, absurdo por se imaginar capaz de funcionar e mais absurdo ainda por acabar funcionando. Mas ele não é perfeito. A dramaticidade da morte do Doc — e a tensão que ela gera ao longo de todo o filme — estão ameaçadas pelo fato de que o espaço do personagem em cena é curto demais. Ele aparece, explica como a máquina do tempo funciona, e morre. Não dá tempo pra nada, a não ser que você tenha um talento extraordinário à sua disposição para fazer com que esses poucos minutos sejam extremamente marcantes. Quando Christopher Lloyd aparece, ele choca, é gravitacional, tudo mais na tela perde importância ao seu lado. Apesar da tarefa aparentemente impossível de ter de concorrer pela atenção do público com a tão aguardada máquina do tempo (a primeira cena engana duas vezes o espectador na expectativa pela sua aparição), é ele quem domina e faz com que nos apaixonemos pelo seu personagem à primeira vista ao ponto de realmente sentirmos sua morte na mesma cena. Lloyd, deliciosamente over em cada menor movimento, resolve tudo em 5 minutos. Não fosse isso, o filme inteiro estaria comprometido.

- Michael J. Fox

Como prévia do lançamento do blu-ray americano, em comemoração aos 25 anos da trilogia, surgiram finalmente as lendárias imagens de Eric Stoltz como Marty Mcfly (havia apenas algumas fotos até então). É um vídeo de um minuto e treze/quatorze segundos que circula por aí. Nele, Bob Gale, Zemeckis e até Spielberg se esforçam para justificar a troca de Stoltz por Fox, do mesmo modo que os dois primeiros já fizeram nos extras do box quádruplo. “Something is missing...”. Não é gratuita nem meramente diplomática a insistente colocação de que Eric Stoltz é talentoso, mas o que Marty Mcfly exige, nenhum outro ator parece capaz de entregar, por isso nem era necessário justificativa alguma, o espectador entende imediatamente a diferença. Há uma jovialidade no Michael, um timing perfeito tanto pras cenas de ação quanto pras cômicas, uma dinâmica absolutamente impecável entre ele e Lloyd, que não há como não pensar em J. Fox como o rosto eterno de Marty Mcfly.

- Thomas F. Wilson, Crispin Glover e Lea Thompson

A esta altura é fácil afirmar: o elenco de De Volta Para o Futuro é irretocável. Os dois últimos têm real destaque mesmo apenas no primeiro filme (Lea Thompson ideal e Crispin Glolver extraordinário), mas é Thomas F. Wilson quem recebe o maior presente e corresponde de forma brilhante interpretando 5 versões diferentes do seu personagem (incluindo Buford Mad Dog Tannen), tranquilamente um dos vilões mais divertidos do cinema.

- Hill Valley

Hill Valley envelhece, rejuvenesce e se transforma com os anos assim como qualquer outro em De Volta Para o Futuro porque é, efetivamente, um dos personagens mais importantes do filme. A cidade funciona como esse painel onde Zemeckis projeta sonho (1885) e lembrança (55); ela é a verdadeira máquina do tempo. A mágica da viagem só é possível porque Hill Valley está viva.

- Clock tower

Grosso modo, o relógio da torre é uma metáfora para o próprio tempo na trilogia. Uma entidade, sempre presente, sempre vigilante.

O roteiro original da Parte I previa uma explosão nuclear para levar Marty de volta para o futuro, cena que se passaria em um deserto fora da cidade. Como a sequência ficaria cara demais, Gale e Zemeckis tiveram de quebrar a cabeça para bolar um final que coubesse no orçamento. Agora me diga: é concebível De Volta Para o Futuro sem a sequência do raio no relógio da torre? Visto agora, pela perspectiva de toda a saga, fica inclusive difícil acreditar que a trilogia inteira não tenha sido construída em torno desse momento. De um jeito ou de outro, ao longo dos três filmes, Marty e Doc estão sempre tentando pegar o raio do relógio, sempre em uma luta particular contra o tempo. A sequência do raio, aliás, é a melhor cena da trilogia inteira e um dos momentos mais memoráveis do cinema de gênero. Até hoje, não importa quantas vezes eu tenha assistido, ainda duvido que vá dar tempo.

- A trilha de Alan Silvestri

Show à parte. De longe o ponto mais alto na carreira do compositor, a trilha de Silvestri é uma proeza inatacável da versatilidade sem nunca perder a unidade harmônica. Ela sorri, se emociona e se irrita embalada pelas variações de humor e pelas situações em que os personagens se encontram. Não há como não encará-la, também, como mais um coadjuvante circulando por Hill Valley, presente em todos os momentos mais importantes da trilogia.

Para o meu parceiro no tempo...

 

Para alguns apenas um daqueles pseudo-clássicos vespertinos nas reprises de Sessão da Tarde, para outros um objeto de culto, De Volta Para o Futuro é acima de tudo um surto narrativo irrepetido e irrepetível, um Frankenstein de gêneros, uma obra de arte do entretenimento.

E aí, pra onde vamos agora?

Comentários (2)

Júlio César Filho | sábado, 12 de Novembro de 2011 - 18:18

Um dos melhores artigos já escritos para o site!

Vinícius Aranha | quarta-feira, 08 de Fevereiro de 2012 - 20:44

Um artigo tão antológico quanto a trilogia. Saudade dos momentos de pura atividade do Boaventura...

Faça login para comentar.