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Festival de Cannes: Entrevista - Aly Muritiba

Pátio (2013) (17min) e Pouco Mais de Um Mês (23min) foram os dois únicos filmes brasileiros selecionados para a programação do 66º Festival de Cannes. O primeiro, um documentário de Curitiba (PR), entrou para a competitiva da Semana da Crítica; o segundo, uma ficção de Contagem (MG), para a Quinzena dos Realizadores - ambas são mostras paralelas e independentes à seleção oficial do festival.

Conversamos com Aly Muritiba, diretor de Pátio, filme que passou por um processo seletivo muito concorrido para chegar em Cannes: dos 1.724 curtas internacionais inscritos na Semana da Crítica, apenas 10 foram selecionados.



Lygia Santos: Quais suas impressões da curadoria de curtas-metragens da Semana da Crítica?

Aly Muritiba: Dos 10 filmes selecionados, tive algumas decepções mas também boas e gratas surpresas. Eu imaginava que veria muito mais filmes experimentais ou com uma pegada mais ousada e não tao narrativos como vi. No entanto, pelo menos 4 filmes foram surpreendentemente ousados e ao mesmo tempo narrativos. Tem um filme de uma garota russa, mas que foi feito na Alemanha (Come and Play) sobre brincadeiras e jogos de guerra que é uma experiencia maravilhosa, usando imagens de arquivo da Segunda Guerra Mundial com tomadas feitas atualmente. É um filme bem bacana, bem inventivo. Tem um filme de uma francesa, mas que filmou na Islândia, chamado Vikingar. O chinês La lampe au beurre de yak também é muito bom. Enfim, dentro dos 10 filmes, pelo menos 4 ou 5 são muito bons e acho que têm totais chances de receber o premio concedido ao melhor curta. Então está bom, é uma ótima curadoria.

A Semana tem um só prêmio para os curtas então?

São dois prêmios: um para o melhor filme e um premio do Canal +, da França.

Todos os outros curtas selecionados pela Semana são ficcionais?

É, o meu é o único documentário. Esse russo, apesar de ser uma ficção, usa algumas imagens de arquivo pra compor a obra, mas é uma obra ficcional também. O meu filme é o alienígena da sessão, com certeza. Não só por ser um filme documental, mas pela proposta dele também. Ele é bem distinto dos outros.

Você sentiu alguma expectativa do festival em relação ao que o Brasil ou mesmo a America Latina deveriam produzir?

Bom, latino-americanos eu só vi o meu e o do André Novais. Apesar de terem outros filmes latino-americanos aqui, não cheguei a ver nenhum, então não sei como estão os outros filmes aqui em Cannes esse ano. Mas o que eu noto, do que se fala e dos filmes que tenho visto em outros festivais, é que a América Latina produz filmes, em sua grande maioria, com uma conotação político-social forte, talvez mais forte do que a Europa produz. Se bem que tenho visto curtas-metragens bastante engajados politicamente vindos da Europa, e acho que isso é reflexo da crise pela qual a Europa está passando agora. Enfim, acho que os filmes latino americanos costumam ter um contexto sociopolítico bastante presente, que aparece de diversas formas, não necessariamente como tema.

Você sente que existe um apreço pela técnica bem executada ou a precariedade também tem lugar?

Esse é o lance. A gente, em festivais lá no Brasil, consegue assistir a filmes vindos de várias partes do mundo. Eu ajudei a fazer a curadoria do festival Olhar de Cinema (Curitiba) duas vezes, então falo pelos filmes que nós recebemos. Há muitos filmes que são precários sob o ponto de visa técnico e que ainda assim são muito instigantes, muito estimulantes e que merecem ser vistos apesar de sua precariedade técnica. Muitas vezes essa precariedade é proposital, faz parte da concepção do projeto, o que pode ser muito bacana. E aqui a gente não vê esse tipo de filme não. Aqui, a precariedade – pelo menos nos filmes que eu vi até agora – não está presente, não é contemplada. Eles primam por filmes melhor acabados, melhor executados. Às vezes isso é bom, as vezes é ruim. Dentre os curtas que vi, há filmes que parecem ensaios para longa, pequenos pedaços de longa, ou curta-portfolio para mostrar “olha o que eu sei fazer, me ajude a fazer um longa que eu vou fazê-lo muito bem”. E a mim particularmente não agrada esse tipo de curta-metragem. Na sessão da Semana da Critica tinha um filme norte-americano que claramente era isso e que não se resolve tao bem enquanto curta-metragem.

Como foi o processo de seleção aqui, quais foram as etapas, por quem o filme passou? Você teve algum retorno dos curadores?

No caso do meu curta, ele foi visto por um dos curadores, Bernard Payen, lá em Tiradentes. Quando ele assistiu ao filme, ele entrou em contato comigo. Naquela ocasião, eu estava em Sundance. Antônio, produtor do curta, estava em Tiradentes, e eles encontraram, conversaram. O Bernard falou que tinha gostado muito do curta e gostaria de umas cópias pra trazer pra cá. Aí nós inscrevemos o filme e seguimos em contato com o Bernard. Eventualmente ele veio dizer: “olha, o filme foi visto pelos outros curadores, eles gostaram, estamos fazendo a pré-seleção”… até que veio a seleção oficial. E é bacana porque os curadores estão muito presentes no festival. Eles apresentam e discutem as sessões, conversam conosco o tempo inteiro, dão feedback. Conheci os outros dois rapazes que participam da curadoria da Semana da Crítica (Baptiste Etchegaray e Fabien Gaffez) e deu pra sentir que eles ficaram felizes em poder trazer um filme brasileiro pra cá, e um filme tão diferente dos outros. Foi bacana o feedback que eles deram.

Sobre o filme, como foi o processo de realização?

Bom, eu estava fazendo um longa-metragem naquela penitenciária, o A Gente, que estou finalizando agora, e no meio do processo decidi fazer o Pátio. Eu queria fazer um segundo filme, queria que fosse um curta, queria que fosse um documentário, mas não tinha descoberto ainda a abordagem. Aí, no meio do processo de filmagem do A Gente, percebi que aquela abordagem, aquele ponto de vista, colocar a câmera naquele lugar, seria o local adequado pra falar do tema que eu queria falar. O Tatu era um cara que eu já conhecia já algum tempo na penitenciária porque eu havia trabalhado lá. Houve um trabalho prévio de convencimento: dele, depois dos outros presos, e da famílias dos presos a participarem do filme. Eu tive que conquistar a confiança deles e isso levou um tempinho. Aí, depois nós passamos 3 semanas filmando, fazendo as imagens. E durante as filmagens, havia três microfones no pátio e dois deles eram lapelas que ficavam captando as conversas dos caras. Muitos dos temas eram sugeridos por mim, outros eles que sugeriam, eram coisas naturais que eles queriam dizer. E, durante a noite, eles ficavam com um microfone e um gravador na cela, gravando o que eles quisessem gravar. Ao longo dessas 3 semanas, tive um grande material de imagens, mas um material de som muito maior. O trabalho depois foi construir a banda sonora do filme na ilha de edição e só depois fazer a montagem das imagens que dialogassem com aqueles sons.

Desde o primeiro momento, a câmera esteve naquela posição? Ela não passeou pelo espaço?

Não, a câmera sempre esteve naquela posição. Para o desespero do diretor de fotografia do filme, eu não deixava ele fazer isso. Ele ficava: “ah, deixa eu fechar o quadro!” e eu respondia “não, não, é isso e pronto. Eu não quero outro enquadramento. Se você fechar a gente não vai usar, a gente vai ficar só desperdiçando tempo.”

E como foi o processo de montagem, que você dividiu com o João Menna?

Foi um trabalho muito bom, muito colaborativo. O João, alem de grande montador, tem formação em antropologia. Ele montou muitos documentários etnográficos. Então essa experiência que ele tinha anteriormente foi muito boa pra que a gente pudesse discutir todas as opções. E as opções eram qual áudio usar e onde. E como construir essa história. Embora o enquadramento seja muito rígido, há uma história com uma linha dramática ascendente que está sendo contada ali. Tem começo, meio e fim na banda sonora. Essa construção se deu muito nas conversas que eu e o Menna tivemos na ilha de edição e foi muito prazeroso trabalhar com ele. Tanto é que eu e ele montamos juntos o longa-metragem A Gente e provavelmente ele vai montar o meu próximo longa, porque foi uma parceria muito boa.

Existia uma urgência para filmar aquelas imagens, pela saída iminente do Tatu?

Sim. A urgência era maior porque eu consegui autorização do Departamento Penitenciário para filmar ali, mas ela podia ser suspensa a qualquer momento. Então a urgência vinha mais do medo de que os caras mudassem de ideia. A saída do Tatu era mais tranquilo porque se o alvará dele chegasse antes do término do processo de filmagem, eu podia filmar a saída dele e depois continuar filmando o pátio. No plano aberto, no plano geral, você não identifica muito quem é o cara que esta falando. Até porque não importa quem é o dono da voz. Aquela voz é a voz de qualquer um, porque ao mesmo tempo é a voz de todos eles. Todos eles têm família, todos eles querem sair. O discurso do Tatu no filme é muito representativo dos anseios daqueles caras que estão ali.

E o filme foi realizado com que recursos?

É um filme todo feito por nós mesmos. Com nosso equipamento, com nossa pouquíssima grana e ponto. É o tipo de filme que não dava pra esperar financiamento e eu acho que seria difícil alguém financiar um filme desse. Como eu queria muito fazer o filme eu fui lá e fiz. Óbvio que quero fazer filme com dinheiro, mas se não tiver eu vou lá fazer do mesmo jeito.

Que tipo de projeção a seleção para o Festival de Cannes trouxe para o filme e para você?

O Pátio era um filme que nós sabíamos que não teria uma carreira tão exitosa quanto A Fábrica, porque A Fábrica é um filme mais fácil de ser visto e o Pátio é muito rígido e ele não funciona tão bem em telas pequenas, e os curadores vêem filmes em computadores e televisão. A gente imaginou: “o filme ficou bacana, ficou bom, tem algo a dizer, então talvez entre em alguns festivais”. E aí quando ele entrou, primeiro em Tiradentes e no É Tudo Verdade – onde foi premiado – e depois aqui, a gente percebeu que ele ia sim entrar em poucos festivais mas seriam festivais grandes e importantes. E, ao entrar num festival como Cannes, os outros festivais nos quais ele não teria a menor chance – porque é um filme mais difícil e o cara não teria paciência pra ver até o final – começam a pedir o filme, a convidar para que você mande pro festival. E isso é muito bom porque fiz o filme e quero que ele seja visto. E em paralelo a isso, a entrada aqui chamou muito a atenção da imprensa. Azar do Brasil, mas sorte  nossa, não tivemos longas esse ano, de modo que o foco da imprensa nacional ficou toda pra mim e pro André. Fico triste que não tenhamos longas aqui mas é bacana que se tenha tanta atenção dada a curtas-metragens, principalmente o curta do André, que é um filme lindo. Essa repercussão é boa, mesmo quem não entende muito de cinema, que não é do meio, e às vezes nem sabe bem o que é um curta-metragem começa a ler notícias a respeito. Isso aconteceu quando A Fábrica foi pré-selecionada para o Oscar, as pessoas começam a se interessar por curta. E isso é muito bacana pra nós que fazemos curtas.

O que o festival está te oferecendo em termos de trocas, contatos?

É muito bom estar aqui. Eu tenho conhecido alguns curadores e organizadores de festivais, inclusive pessoas do Brasil que eu não conhecia e que estão aqui. E é bacana porque no Brasil eu teria que procurá-los e aqui eles me procuram. Isso eh muito bom pro meu filme. Graças ao pessoal da Semana da Crítica, tenho conhecido gente bem interessante de festival internacionais, agentes de venda. Eles fazem essa mediação. A gente recebeu alguns convites aqui que foram muito bons. Por conta da repercussão que A Fábrica teve e que o Pátio esta tendo, algumas empresas francesas vieram nos procurar, querendo representar o meu longa-metragem que vai ser rodado no segundo semestre. Tem alguns agentes de venda bem interessados. Aqui nós podemos encontrar pessoalmente essas pessoas com as quais nós já trocávamos e-mails. Hoje tive uma reunião maravilhosa com uma produtora francesa que provavelmente se tornará co-produtora do filme – e aí o filme vai ser brasileiro e francês, o que pra nós é fenomenal porque teremos lançamento na França, teremos agente de venda na França. E para um filme brasileiro conseguir isso é difícil, é suado. Então a vinda pra cá foi muito, muito boa nesse sentido. Eu nem vim pra cá fazer negócios, eu vim ver filmes, mas as reuniões das quais eu participei renderam coisas boas. Acho que negócios vão se concretizar e, principalmente, negócios com gente que não está só interessada no mundo do business do cinema, mas gente que viu os meus outros filmes e que disseram “eu acho que você vai fazer um longa interessante, eu quero estar junto com você”. E é isso que me interessa. Eu quero que esteja junto de mim gente que está porque gosta dos filmes e gosta de mim, principalmente. Não porque espera ganhar dinheiro. Eu não estou nessa pra ganhar dinheiro, mas pra fazer filmes, amigos, e aqui pude conhecer gente com os mesmos interesses.

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