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...E o Vento Levou cai fora da HBO Max. Merece pegar o beco?

...E o Vento Levou (Gone With the Wind,1939), orquestrado pelo produtor David O. Selznick

Mediante os protestos antirracistas provenientes duma absurda tragédia da execução do ex-segurança negro George Floyd, por um policial branco seguido somente de malditos olhares doutros companheiros de farda igualmente brancos, algumas pautas vieram à baila com mais veemência. Uma delas, especificamente, sobre o filme ...E o Vento Levou (Gone With the Wind,1939), feito por 3 diretores, eles seriam Victor Fleming, George Cukor e Sam Wood, e, na verdade, sim, orquestrado pelo gigante produtor David O. Selznick. Produzido pela Selznick International Pictures e Metro-Goldwyn-Mayer (MGM) com distribuição da Loew's Inc. O canal de Streaming HBO Max retirou o filme da sua plataforma após várias críticas florescerem, principalmente do autor premiado na feitura do roteiro de 12 Anos de Escravidão (2013), John Ridley. No jornal Los Angeles Times ele aloprou, entre outras coisas, que a fita "não fica apenas aquém da representação, mas ignora os horrores da escravidão e perpetua alguns dos estereótipos mais dolorosos das pessoas de cor." A assertiva do canal, após os conflitos, fora "se vamos criar um futuro mais justo, equitativo e inclusivo, nós devemos primeiro reconhecer e entender nossa história." Então perante o momento complicado, o filme caíra fora. Dum lado a oportunista opção material de mercado e publicidade para se evitar futuros problemas, de outro, a questão do racismo nums pauta tão membranosa no tecido social e político contemporâneo.

Canal de Streaming HBO Max

O poderoso produtor David O. Selznick

O premiado roteirista John Ridley e seu Oscar por melhor roteiro adaptado de 12 Anos de Escravidão (2013)

De proa, afirmo agora que apagar a obra do canal é uma marmota. Mesmo que eu queira que o filme se lasque, é tirar a história da pista. Não a ESTÓRIA contada pelo filme, mas a HISTÓRIA da existência do mesmo. O pensamento das figuras que planejaram aquele material. Ora, estas hecatombes racistas nos ensinam como era o pensamento de parcela duma turma abastada em determinado período. Mas eu sou um branco azedo explicitando uma opinião teórica terceirizada numa questão sobre racismo na qual eu nunca terei conhecimento empírico, já que não sofrerei racismo. Jamais.

Um viés estratégico. Por mais escroto que isto possa parecer. Quer um exemplo brasileiro mais leve, mas contemporâneo ao objeto principal aqui, para subirmos os degraus (descermos) esculhambatórios? Como, por exemplo, se estuda história via a perspectiva dum Gilberto Freyre, que amainava a escravidão? Majoritariamente pelo seu polêmico e importante clássico Casa Grande & Senzala (1933), alvo de grandes críticas pela acusação de docilização da relação dominador branco e escravo dominado. Sua visão deve ser criticada mediante a maturidade histórica e social das discussões pautadas pela modernidade e não se cancelar o trabalho dele. O legado que ele e sua obra deixara tem sua importância para a história, sociologia e antropologia, mas é fruto de seu tempo e deve ser tratado como tal. E criticado sobremaneira. Não estou comparando a obra deste brasileiro ao filme ianque, mas usando do nome e obra dele como exemplo daquilo que podemos discutir sobre a questão sem escrachá-lo. O filme tem problemas bem maiores.

O polímata Gilberto Freyre e sua maior - e polêmica - obra Casa Grande & Senzala. Foto de Kalina Aires. Referência visual do livro do catálogo da Levy Leiloeiro

O caso do filme em questão é mais invocado, diferente e podre. Sementinha do mal. Não só amaina a escravidão, mas a legitima. Pressupõe que os senhores de escravos eram heróis naquele conflito, e não somente nele aliás. Isto não é só interpretação da história, mas sim uma absurda deturpação totalmente fedorenta a racismo enraizado. Por isso mesmo este material deve ser exibido. Estudado, assistido esculachado e elogiado (?). A parte técnica do filme é uma maravilha. A indústria norte-americana sabia (sabe) embalar bem um material racista, e este é um dos cernes que podemos verificar e versar sobre. E na base da provocação. Esconder a história jamais foi uma decisão certeira. Se existem raras exceções, eu desconheço. O Brasil perderia se deixasse de ler Gilberto Freyre por sua riqueza de texto e pesquisa; e rifar um filme absolutamente racista impregnaria um esconderijo fuleiro para tal. Mesmo que sejam questões distantes em seus absurdos – o filme é bem pior – são dois exemplos, em graus diferentes de sacanagem, que confirmam o racismo de tempos anteriores e que não devem ser esquecidos.

Existem problemas muito maiores do que um filme de 1939 possa ensejar, e afirmar isto não é deixar de questionar, mas, sim, escolher estrategicamente, racionalmente, o que este material enseja no seu alcance. Os lugares de poder, que um canal de streaming permite ao material estar lá, são claros. Tem-se a intenção de exibir a parada e lucrar com isso, claro. É o que o ramo comete. Aliás, tinha, pelo menos até a presente data, já que se analisa a possibilidade de a fita entrar no canal em data ainda não definida, junto a uma discussão sobre a problemática. Mesmo diante disso, assumo perfeitamente que existem vertentes de cinema outras merecendo mais respaldo e atenção. As antirracistas inclusas, mas isto deve impedir que outras tantas sejam vistas? Ou então este filme deve ser somente estudado por especialistas e não exibido mais como antes? Por que? Somos algum tipo de bastião de sabedoria acadêmica isenta? A questão racial é gravíssima e a escravidão é uma chaga que jamais será esquecida - e nem deve - mas se entrarmos nesta conversa mole, daqui um tempo alguns autores e artistas racistas serão esquecidos e perderemos a perspectiva racista deles dentro dum debate para que sejam assim acusados. Existem táticas mais efetivas. Deixar o material na pista para debate e esculhambo é uma. Mas, reitero que sou um branco classemedista que racismo não sofre. Se a minha linguagem é grossa, ela tem este objetivo. Não vim aqui para responder, vim para provocar. Ou como diria o saudoso Chacrinha (outro brancoso), vim para confundir.

Por Ted Rafael Araujo Nogueira

Foto de manifestação Black Lives Matters, nos EUA, em protesto pela morte de George Floyd. Imagem por Mladen Antonov/AFP via Getty Images

Se por um lado é consenso quase geral, inclusive entre os que vos escreve, sobre a falta de preparo em lidar com as questões raciais por parte da HBO, que para entrar no grupo de empresas boazinhas e politicamente corretas antirracistas, resolveu jogar no ventilador esse grande ato de bravura e coragem.

Ah, faça-me o favor, meus caros, o que posso ser além de irônico? Por outro lado, eu abro o catálogo dos principais serviços de streaming e só faltar reluzir de tão branco. Recentemente, alguns destes até pensam que nos prestam o favor em separar o gênero “black movie” ou #blacklivesmatter em categorias especiais como se fosse um outro gênero prontinho para ser apagado quando a discussão mudar de rumo, e o negro voltar para o seu papel secundário.

Sobre esse protagonismo temático do negro, é o que talvez mais me intrigue em toda essa história pós retirada do filme de David O. Selznick. Observo com a ternura e a curiosidade de Mammy, um setor cinéfilo que parecem filhos da Scarlett O’Hara morrendo de fome, arrastando-se em esperneio pela retirada do filme. Esses quase sempre são os mesmos que acham filmes “politicamente corretos” são uma bobagem ou quando se busca uma maior representatividade negra é “mi-mi-mi”, ou ainda vociferam que agora vão tirar todos os filmes do catálogo porque tem cena de sexo explícita ou cena de morte nos filmes de gangster ou isso ou aquilo: uma gritaria em nome da propriedade privada!

Parece que sempre que o preto ocupa o debate, a Casa Grande fica se coçando como se tivesse pulga. Coça tanto que dizem que o movimento é midiático, que só é muito popular porque os artistas apoiam, que todas as vidas importam, ele não é racista, mas acha que os negros correm perigo por estar nas ruas. Sintomas de ignorância e falsa caridade cristã que podemos denominar, a partir de agora, como Síndrome dos Filhos de O’Hara, órfãos dos velhos e melhores tempos da boa e velha BRANCA Hollywood.

Será que é tão grave sacar de um catálogo majoritariamente branco, UM FILME branco? Eu ainda fico mais revoltado quando esses serviços e essas grandes produtoras, que maquiam seus rostos com “pó de feijão” oferecendo aos sorrisos migalhas para os pretos, como se eles não fossem culpados pela homogeneidade branca na história do cinema mundial. Pois, erraram feio, esperavam, inocentemente que a negaiada batesse palma pelo ato de bravura do Herói Bobo e Obstinado pela causa da senzala.

E àqueles que sofrem da síndrome descrita só lhes resta um remédio: morder as Costas.

Por Igor Guimarães

Comentários (11)

Jonas Bittencourt Jr. | domingo, 14 de Junho de 2020 - 18:17

blá blá blá blá blá blá...Cara, foda-se, o filme já foi feito, milhões de pessoas ao longo de décadas já viram, se ele causou ou ajudou a causar algum estrago social, é tarde demais pra querer desfazer isso, ''É tarde demais, o dano já está feito'', como diz Thom Yorke em ''Daydreaming''. As pessoas interpretam como bem entendem qualquer coisa, deixa o filme lá pra quem quiser ver, já que é um sucesso que muita gente gosta, quem não gosta só assistir outra coisa caralho! O problema é que a sociedade está ficando tão infantilizada que TUDO no entretenimento tem que passar pelo filtro do ''ain será que isso aqui vai ferir os sentimentos de alguém?''. Politicamento Correto não rima com liberdade artística, licença poética, contexto histórico. Você não tem mais a consciência de que você não é obrigado a concordar ou discordar de algo, ou tem que ter uma opinião para cada coisa, agora você precisa ser tutelado sobre o que pega bem você gostar ou não, ou se deve sequer se omitir.

Jonas Bittencourt Jr. | domingo, 14 de Junho de 2020 - 18:31

Eu quero saber com que autoridade moral a classe artística, empresários do entretenimento, imprensa, personalidades de internet, elite, e figuras públicas no geral(basicamente parasitas) se dão tanta importância a ponto de acharem que realmente moldam a cabeça do cidadão comum? Sério, eu acho super interessante, até do ponto de vista ideológico, esse sentimento paternalista que esses nichos tem, de quererem saber o que é melhor ou não para a gente ordinária, que sustenta as regalias deles. Será que um pedreiro antes de decidir em quem votar fala assim : ''Pera aí, tenho que saber o que a Leandra Leal acha desse político aqui''...A influência que esses seguimentos pensam ter, a aura de auto importância dessa gente(especialmente a classe artística)é tragicômica, já que vemos a realidade os desmentir dia após dia.Querem pautar tudo em nossas vidas,até o que temos ou não que assistir, para ''o bem maior'',na prisão do coletivismo, qualquer atitude autoritária é válida,se é contra ''eles''.

Vítor Miranda | domingo, 14 de Junho de 2020 - 18:39

Tem muita afetação nesse episódio, as pessoas tão agindo como se tivessem queimando em praça pública as últimas cópias de E o Vento Levou... O filme já tem o seu lugar marcado na história do cinema, quem quiser ver não vai ter dificuldade de acesso. O gesto de retirar é apenas algo gentil e simbólico para este momento. A HBO disse que depois vai colocá-lo de volta com uma contextualização, não é? Então assim... menos galera, a parte branca da história do cinema tá longe de ser apagada...

Vinícius De Vita | terça-feira, 16 de Junho de 2020 - 08:57

Toda essa discussão perde sentido quando a gente descobre que o intuito nunca foi tirar o filme do ar e pronto, acabou. A intenção sempre foi tirar do ar e devolver à plataforma com a devida contextualização histórica. E isso será feito com uma introdução em vídeo gravada por Jacqueline Stewart, professora do Departamento de Cinema e Estudos de Mídia da Universidade de Chicago.

Não é razoável que a plataforma simplesmente retire de seu catálogo um dos filmes mais importantes da história do cinema. Se é um filme racista - e realmente o é, lembrando que foi produzido em 1939 -, então é uma ótima oportunidade para incorporar a discussão sobre racismo à experiência de assisti-lo.

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