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A Era dos Filmes - Pauline Kael

Pauline Kael não foi o primeiro crítico a dizer que Alfred Hitchcock era superestimado, nem que os filmes de Stanley Kubrick eram frios e rígidos, muito menos foi ela quem primeiro apontou as limitações do cinema de Federico Fellini, mas foi Kael quem passou para a história como a vilã, a megera que via defeito em tudo, por ter espinafrado esses idolatrados diretores. Mais: críticos geralmente têm suas idiossincrasias – a maioria deles implica com um grande nome (como alguns historiadores da arte que desprezam Picasso), mas o público não leva muito a sério, sabe relevar essas implicâncias. Exceto Kael. Tudo que ela publicou (e como escreveu) durante toda a sua longa carreira foi e é usado contra ela sem nenhuma concessão, imperdoável, como se tudo que um dia ela disse uma única vez sobre um filme específico tivesse sido sua opinião derradeira e valesse para todos os demais – logo ela, que mudou de aviso sobre vários filmes e diretores tantas vezes.

Na tentativa de clarear um pouco as ideias da mais odiada crítica que o cinema já teve, o ensaísta Sanford Schwartz lançou em outubro The Age of Movies (The Library of America, US$ 42), coletânea de ensaios de Kael percorrendo todas as fases de sua vida profissional, começando com um ensaio escrito quando ela ainda era estudante de filosofia em Berkeley (em 1952), até uma de suas últimas críticas, quando cobriu Os Imorais (The Griffters, 1990), de Stephen Frears, de elogios, publicada no penúltimo ano (1990) em que assinou sua coluna na revista The New Yorker. O texto de abertura, “Filmes, a arte desesperada”, já dá o tom do que virá pela frente: Kael, então com 20 anos, tenta mostrar como o cinemascope e a tela gigante, introduzidos na década de 70 para competir com a televisão, contribuíram para levar o cinema a um grau de imbecilidade só vista antes nos filmes de Cecil B. De Mille, considerado insuportavelmente datado e cafona já nos anos 30, tanto pela estética quanto pelos temas bíblicos, mas o supra-sumo da elegância se comparado às superproduções em tela gigante que viriam depois, que muitos consideram até hoje como o máximo do cinema de Hollywood.

Lendo-se o livro, um irresistível tijolo de 800 páginas, desses impossíveis de se parar de ler, a terminar em poucos dias, fica-se sabendo que Kael escolheu filosofia e não inglês como curso na universidade pois temia tornar-se “professora de inglês”. Nunca terminou o curso, decepcionada com o baixo nível dos professores e dos demais alunos (Berkeley é uma das 10 mais conceituadas universidades do mundo), mas foi na cafeteria da universidade que surgiu a primeira proposta para ela escrever sobre filmes – que resultou num texto bastante negativo de Luzes da Ribalta (Limelight, 1952), de Charles Chaplin, oficialmente sua primeira crítica. Mudou-se para Nova York para tentar a vida, mas, chegando lá, os clichês acadêmicos, o linguajar cifrado, a idolatria das vanguardas e a contestação a toda forma de arte tradicional, além do esnobismo da maioria dos intelectuais, fizeram-na voltar para a Califórnia, onde teve a filha, que criou sozinha. Para conseguir dinheiro, preferiu ter vários sub-empregos (foi cozinheira, dirigiu uma lavanderia), pois, segundo ela, o trabalho acadêmico, dar aulas e corrigir textos lhe consumia toda a energia: preferia esses trabalhos manuais para ter mais tempo para ler e escrever.

Da experiência nova-iorquina, trouxe contatos com a Partisan Review (a revista dos intelectuais de então) e uma amizade com o escritor Saul Bellow, filho de judeus imigrantes como ela, da qual Kael, segundo o autor, tirou a maneira coloquial de escrever, “americano”, não britânico, simples, cheio de gírias, claro, sem jargões nem teorias estruturalistas ou pós-estruturalistas (semiótica, por exemplo) a empastelar o texto. Com essa postura independente e nem um pouco deslumbrada com o cinema europeu (não comprou nem mesmo a “teoria do autor” da Cahiers du Cinéma) e ao mesmo tempo bastante crítica das grandes produções, foi fazendo seu nome em especial com ensaios como Trash, Art, and the Movies, um elogio aos filmes trash, até que lançou I Lost it at the Movies, seu primeiro livro de ensaios, um best-seller que lhe abriu as portas das grandes publicações.

De volta a Nova York, escreveu para quase todas as grandes revistas – e arranjou briga em todas, em especial por conta do seu humor, de difícil compreensão para os editores, que não entendiam o porque de tanto deboche. Mesmo na New Yorker, onde trabalhou por 30 anos, foi demitida três vezes. Foi sua defesa dos então jovens cineastas americanos (Martin Scorsese, Robert Altman, Francis Ford Coppola, Arthur Penn) e seus filmes violentos e cheios de alusões às drogas que lhe custou seu posto na conservadora Time. Kael gostava mesmo era de Bonnie & Clyde - Uma Rajada de Balas (Bonnie & Clyde, 1967), O Poderoso Chefão (The Godfather, 1972), Nashville (idem, 1975), para ela o melhor filme dos anos 70, e Taxi Driver (idem, 1976), e não dos filmes incensados pela crítica que ela considerava apenas diluição, sem nenhum brilho inovador: Butch Cassidy and the Sundance Kid (idem, 1969), Chinatown (idem, 1974), Operação França (The French Connection, 1971), quase tudo do Kubrick, Cassavetes (detestava) e até mesmo Manhattan (idem, 1979) – Kael previu que a nostalgia iria arruinar o cinema de Woody Allen.

A teoria de Kael era de que a intensa força criativa dos anos 60 (cinema underground, cinema novos, filmes de terror, experiências estéticas) foi sendo assimilada por diretores menos capacitados, que resolveram copiar e adaptar esse conteúdo para o grande público. Diluições que foram muitas vezes bem sucedidas em termos de bilheteria, mas que deixavam transparentes as limitações de seus diretores.

O título do livro, A Era dos Filmes, foi tirado da crítica a Contatos Imediatos do Terceiro Grau (Close Encounters of Third Kind, 1977), onde Kael chama Steven Spielberg de “o mágico da Era dos Filmes”. Dentre os melhores textos, vale a pena ler os ensaios sobre A Fúria (The Fury, 1978), de Brian de Palma, Os Invasores de Corpos (Invasion of Body Snatchers, 1978), de Philip Kaufman, e de Veludo Azul (idem, 1986), de David Lynch, mesmo para quem não é lá grande fã desses filmes (meu caso) – estão lá as explicações sobre a importância do horror e do trash para o cinema. O ataque a Kubrick se dá em Laranja Mecânica (A Clockwork Orange, 1971) e a Fellini, sobre seu Satyricon (idem, 1969) – uma sacanagem, pois é um dos piores filmes do diretor italiano. Há textos que são puro deleite, como os de Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos (Mujeres al Borde de un Ataque de Nervios, 1988), de Pedro Almodóvar, e As Irmãs Makioka (Sasame-yuki, 1983), de Kon Ichikawa. Pelo amor de Kael pelos filmes asiáticos, em especial os japoneses, essa categoria está subrepresentada no livro.

Hoje, praticamente qualquer um que escreva sobre cinema e que não faça parte dos chamados “apocalípticos” (na concepção de Umberto Eco), ou seja, veneram os filmes experimentais europeus e são adeptos do tal “cinema cabeça”, ou dos “integrados”, que os adoram o cinemão de Hollywood e correm atrás do Oscar, vai ser considerado um discípulo da Kael, ainda a referência máxima da independência em crítica cinematográfica. Ganharam até apelido: os “pauletes”. Mas os novos seguidores, para o autor, infelizmente teriam perdido uma das principais características de Kael: o humor. Nem nos mais furibundos ataques, na mais destrutiva crítica, Kael nunca perdia o bom humor. Sempre havia espaço para o riso. Hoje em dia, haveria um excesso de dogmatismo, em especial com a internet, tanto de um lado quanto de outro, e pouca graça.

Por falar em internet, incrível como Kael tenha escrito tudo aquilo sem consultar o IMDB, por exemplo: 90% de seus textos eram sobre estreias que ela viu no cinema, sem recorrer a torrents e DVDs. Sem dúvida, uma mente superdotada, pois os textos em geral eram longos e os filmes eram analisados em minúcia, com uma infinidade de referência a outros filmes, livros, peças de teatro e artes plásticas. Sua casa era um amontoado de livros, jornais e revistas, tudo catalogado profissionalmente. Hoje, a tecnologia ajudou a maioria dos críticos a serem tão profissionais quanto Kael, mas a maioria se sai melhor em filmes antigos, já várias vezes resenhados, com amplo material de pesquisa disponível no Google. Ou seja, na parte técnica Kael foi igualada, mas fazer tudo que ela fez só analisando estreias no calor do lançamento, vendo tudo no cinema, na tela grande, isso ainda ninguém superou, o que talvez explique a reedição de seus textos e as duas novas biografias que também acabaram de ser lançadas nos EUA. Pauline Kael foi e ainda é a crítica de cinema mais influente hoje, mesmo 20 anos depois de sua aposentadoria e 10 de sua morte.

Comentários (35)

Reno Beserra | quinta-feira, 12 de Janeiro de 2012 - 14:09

"Cassavetes (detestava)"

Coitada...

Patrick Corrêa | sexta-feira, 13 de Janeiro de 2012 - 22:14

Não goatava de Kubrick? Interessante...

Detectei um índice de interlíngua no texto de Demetrius. Logo no primeiro parágrafo, ele diz que ela mudou de "aviso" várias vezes. Certamente, ele quis dizer "opinião", mas provavelmente foi influenciado pelo francês, em que "opinião" é "avis", e escreveu algo parecido em português. Se ele estiver morando na parte francófona do Canadá, é a explicação mais cabível.

César Barzine | quarta-feira, 26 de Dezembro de 2018 - 18:56

Ótimo artigo, assim como a biografia presente no perfil dela.

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