Este não é bem um comentário afinco sobre este filme do David Lynch...
Pode ser un peu polêmico, pode mesmo afetar algumas crenças, mas David Lynch certamente é o Ed Wood de nossa geração. Digo nossa geração, mas David Lynch já está na ativa dirigindo filmes há quase quarenta anos. Bem menos polêmico é dizer que Lynch é, sem dúvidas, o cineasta maldito de sua geração, perdido em Hollywood. Nem vindo da vanguarda americana, nem surgido dos independent filmmakers e, apesar de tudo, produzindo em Hollywood. Selecionado pelos seus primeiros trabalhos com curta-metragens para fazer parte do conservatório do American Film Institute no Centro de Estudos Avançados de Filmes na Califórnia, Lynch é fruto fidedigno da primeira geração de cineastas cinéfilos pós-1960. A história do cinema é o pano de fundo au-passant na cinematografia de Lynch, em especial neste primeiro longa-metragem de sua carreira que é Eraserhead (que teve o início de sua produção em 1971 e lançado em 1977), objeto curioso onde toda a premissa de sua carreira estará exposta e todos os conceitos que ele aprofundaria: o gosto pelo mórbido, pelo grotesco, pela América do Norte desfuncional, bizarra. Ainda assim e também, as bases de uma carreira que não cessaria de produzir uma iconografia peculiar, inspiração para as mais diversas artes - da televisão à música. Lynch, um "cineasta medíocre", assiste, tentativa por tentativa, suas iniciativas de produzir séries para tv serem descartadas e tornarem-se sobras de luxo para o cinema, de onde a estética-vídeo de seus filmes.
Lynch músico: vamos saltar dez anos ainda nesse tempo retroativo para o ano de 1987. Sem muita história, em março de 1987, três garotos e uma jovem lady adentram o Fort Apache Studio para gravar uma fita k-7 em três dias que será reconhecida e batizada pela sua cor (Purple Tape) e produzirá um dos últimos lamentos condenados de toda uma geração precedente e imediatamente anterior conhecida como C-86 (a Classe de 1986, como se diz nas escolas).
A fita ocupará também um lugar um tanto maldito, para não dizer rejeitado. A mítica Purple Tape nunca terá um relançamento em seu formato e ordem original noutros moldes, nem em Vinil nem em CD. Embora surja mutilada em dois lançamentos posteriores da banda; Como o EP Come on Pilgrim, ainda em 1987, considerado espécie de debut oficial da banda, e apenas em 2002 as nove músicas restantes da Purple Tape vieram a luz do dia para o público. O problema é que as músicas tal quais foram dispostas originalmente na fita roxa é um artigo raro de luxo, além de serem um lembrete do que era o rock pré Butch Vig e Steve Albini producers.
Para nosso êxtase e alegria (temporário) um áudio da fita k-7 surgiu no início de 2013 no Youtube (e permaneceu online por apenas seis meses), numa transcrição original stereo que funcionava como um cotonete para os ouvidos de tão cristalino. Era uma estréia genial, violenta, majestosa, provocativa e mórbida e desfuncional, assim como em Lynch, olhando de rabo de olho para cenas loucas a serem assimiladas numa U.S.A. profunda, obras só possíveis pela má alimentação gordurosa norte-americana, baseada em ovos e bacon at breakfast.
Em Purple Tape, uma temporada por cenários e personagens exóticos rodopiam feito um caleidoscópio num turbilhão: peregrinos e senhoras da elevação, Mother's fazendo sermões para wicked son's, encontros com garotas nem tão inocentes assim que fará nos sentirmos como o Rei Salomão, dizendo que talvez tenhamos um bebê, mesmo que você não tenha nenhum, em suma, um adorável perdedor. Tudo isso, em menos de 10 minutos iniciais do disco, por uma longa jornada onde ainda macacos irão para o paraíso e podemos cojer a la playa.
Para fechar o arco da digressão aqui, no meio desse caos, na metade da fita roxa surge repentina como uma pedra lançada com dez anos de delay, uma versão cover da apresentação do circo de pulgas presente no filme de Lynch, referido acima. Enquanto em Eraserhead, a música aparecia como uma (falsa?) doce promessa de que no Paraíso tudo ficará bem, em meio a louca jornada no inferno do filme de Lynch. Na versão dos Pixies, In Heaven (Lady in the Radiator Song) é uma música gritada, desesperada e urgente. A música ocupará um lugar (spot) especial e, por que não, maldito e subterrâneo, em meio a cultura pop com versões de artistas mais conhecidos desde Bauhaus, Devo e Faith No More até mais obscuros como Jay Reatard, Zola Jesus, Tuxedomoon e Forgotten Sunrise.
No YouTube tem essa edição de momentos condensados da apresentação no filme original:
https://www.youtube.com/watch?v=awVNCIjQq1A
Cara, esse filme impacta mesmo. Não tem jeito. As imagens lindas e bizarras e todo o contexto é muito interessante. Belíssimo texto, Francisco
Vaelu Cristian, é claro que esse comentário não esgota e mal toca as camadas do filme e logo toma uma tangente. Confesso não ser o maior fã de Lynch, longe disso, tenho um mal estar enorme em relação aos últimos filmes dele mal conseguindo terminar de vê-los (Império dos Sonhos já tentei ver umas três vezes e sempre abandono o filme no meio, acho que sempre na mesma parte). Mas para mim, Eraserhead já contem todo o arsenal de temas e algo importante para mim, essa característica de um cinema brechtiano de Lynch, ponto forte e adversa de seus filmes.