Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

A arte de desempoderar.

1,0
Tyler Perry é um fenômeno diferenciado no audiovisual norte-americano. Há anos seus longas se estabeleceram dentro do circuito cinematográfico como mantenedores de uma vertente muito popular e de retorno financeiro fácil devido ao custo muito baixo: os filmes de temática 'black'. Os Estados Unidos têm um público cativo que movimenta esse setor e cria astros como Kevin Hart, Tiffany Haddish, Gabrielle Union, Regina Hall, que funcionam e existem quase num universo paralelo ao cinema americano padrão. Nesse lugar, Tyler é um rei, com seus filmes baratíssimos que retornam entre 5 e 10 vezes o seu custo. Trabalhando em esquema para entregar 1 ou 2 filmes por ano, Tyler tem inclusive um personagem célebre, Madea, que já protagonizou diversas comédias suas, vivida por ele mesmo, e que é uma espécie de 'vovózona'. Mas os longas de Tyler, o que têm de popular têm de criticados, e anualmente ele é esperado entre os indicados ao Framboesa de Ouro, prêmio dado aos piores do ano que ele já levou algumas vezes.

O fato de ser tão local, dos filmes terem alcance tão específico mesmo dentro dos EUA, e da crítica detestar seus produtos, o restringe fora do seu país. O lançamento de Acrimônia no Brasil espanta pelo fato de ele nunca estreiar por aqui - esse é apenas seu segundo trabalho de direção a chegar em nosso país, e o primeiro depois de 15 anos. Mesmo no auge do home vídeo ele raramente tinha lançamento por aqui, mesmo domesticamente. Ainda que não se saiba como histórias tão simplórias como as suas possam ter o alcance que um lançamento cinematográfico peça, onde os filmes necessitam de um retorno imenso e rápido para justificar seus lançamentos, é interessante que ele volte a dar as caras depois de anos de ausência. E que o escolhido seja um filme tão aberto a discussões e pedradas como esse; sei que nada disso corresponde à crítica do filme em si, mas a trajetória de Tyler é muito curiosa em seus dados para ser ignorada.

Cinematograficamente, Acrimônia é, por falta de expressão melhor, nada. Uma tentativa de provocar tensão aqui, uma vontade de parecer ambíguo ali, e o filme não alcança coisa alguma em montagem, fotografia ou cenografia; é um objeto inanimado a conseguir vaga num circuito afunilado e engessado, que aceita poucas ousadias, mesmo americanas. Mesmo enquanto gênero o filme não se acerta - não se entende como drama, romance, suspense, filme de tribunal, e acaba apenas cômico, ainda que de maneira involuntária. Ao pesquisar os dados apresentados acima e perceber com o filme o lugar de Tyler no cinema hoje, tende-se a concordar com a ausência dele no nosso circuito. Ainda que seu elenco tenha uma certa correção, nenhuma interpretação é valorizada pelo roteiro repleto de clichês, com frases ruins sendo ditas, desenvolvimento de personagens esquizofrênico, onde todos mudam de personalidade ao sabor do vento (inclusive influenciando na reação dos atores, todos parecendo estupefatos por terem de dizer o que dizem), e construção dinâmica equivocada, com tempos de cena absolutamente incompreensíveis.

Mas a verdade é que assistir Acrimônia nos dias de hoje é perceber como pode ser negativa a visão que algumas pessoas têm do mundo ao redor, e como propagar tais visões não somente podem ser consideradas perigosas como principalmente ofensivas. Tyler Perry é um homem cis negro que fala direta e quase exclusivamente para esse mesmo público, ainda que as personagens femininas de seus filmes sejam quase sempre as figuras centrais. Seu novo filme não teve o sucesso esperado e tem sido bem pouco problematizado, embora seja um caldeirão de desserviço. Pois se em 2018 um homem coloca sua protagonista nos primeiros 5 minutos para dizer "eu sei que todos veem uma mulher negra como histérica, eu não sou histérica!", e 1 h e meia depois ele desenha através de sua narrativa a histeria dessa mesma mulher, é porque algo de minimamente irresponsável está sendo construído.

A construção do discurso do filme tem uma natureza e sua conclusão outra, mudando o caráter da maioria de seus personagens para os opostos. Caso houvesse sutileza na proposta de ambiguidade que o filme tenta criar, talvez Tyler conseguisse entregar o filme que em sua cabeça deve existir. O que é visto no entanto é um desviado olhar sobre o suspense familiar dos anos 90, coisas como Dormindo com o Inimigo e A Mão que Balança o Berço, sem qualquer vislumbre da diversão desses longas e sem o potencial debate que ele acreditou mover. Na base é um filme que teria a oferecer emoções baratas mas sonhou em ser mais; acabou se transformando em algo completamente desconectado da realidade atual, com um show caricato de Taraji P. Henson, que poderia fazer refletir sobre uma espécie de proteção ao 'sagrado papel da esposa e do casamento', mas acaba por tirar a dignidade de mulheres que sempre foram diminuídas e ridicularizadas; nas mãos de Tyler, elas só encontram mais incompreensão e chacota. 

Comentários (0)

Faça login para comentar.