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Críticas

Cineplayers

A mulher no centro.

9,0
Há uma cena específica em Além das Palavras (A Quiet Passion, 2016) que, arrisco dizer, assombrará e perturbará qualquer espectador, ou, no caso de Davies, qualquer “contemplador”, durante dias: de um instante para o outro, no que a expectativa diria ser a chegada de uma outra cena “qualquer”, materializa-se um sonho anunciado pouco antes por Dickinson: em slow motion, a câmera se aproxima da poetisa banhada somente pela luz incandescente de um candeeiro, metade de seu rosto obscurecido pelas sombras da noite, ao que a porta de sua casa se abre sozinha e um homem completamente sombreado, aparição espectral do desejo mais íntimo da mulher – o de que um homem suba suas escadas e, por que não dizê-lo assim, toque sua alma – adentra o recinto e realiza a ação por ela ansiada, mas não antes que a câmera se retraia em seu próprio movimento sutil e foque, por consideráveis segundos, um vaso magnânimo com flores de cores vivas. A cena é acompanhada por um canto lírico que perfura a lentidão onírica e anuncia, logo no primeiro verso, o sentimento de ter “visto um rosto pela primeira vez”, o rosto do amado que ela na verdade nunca viu. Mas não é sobre sua tragédia que quero me ater: é, ainda que o fluxo se retome depois, sobre a interrupção do movimento do espectro para focar no vaso: ele me diz que a consciência pictórica de Davies não necessariamente avança, mas interioriza-se para dentro de si mesma, como se com o intuito de expandir o próprio escopo de possibilidades do cinema de aliar-se à pintura para descortinar um segredo: é o olhar poético que, até hoje, impediu o mundo de murchar – assim como foi o corte de montagem aquele que cessou a morte do vaso com flores. Ele permanece em memória.

Retorno ao título, que a tradução brasileira novamente se presta ao favor de distorcer. Porque por mais que se possa pensar Emily Dickinson para além de suas palavras, por mais que o filme, de fato, atravesse sua poesia (mas não a exclua de modo algum) para cercar a mulher de atenção, é o título original que mais preserva sua essência: uma paixão quieta, silenciosa, tolhida. Pelo reverendo por quem a poetisa se apaixona? Pela família que insiste em não abandonar? Pelo mundo que a sensibilidade esponjosa filtra? Possivelmente todos estes, e uma dezena de outros. E o que é mais notável nessa que se pode muito bem apelidar de cine-biografia é o desprendimento completo da tentativa de abarcar uma vida, do seu nascimento ao seu apagamento. De fato, a obra principia por onde seu recorte acha propício, e finda na morte de Dickinson: há um ponto de partida e um de chegada, um panorama de aspectos considerados tocantes à sua vida; mas o interesse de Davies não está no alcance. Está, antes, no adensamento, na profundidade. Quase todas as falas do filme se impregnam de um aspecto de literaridade, uma linguagem que chama atenção para si mesma, como uma coletânea de citações cintilantes de uma obra qualquer que nos seja cara. E ainda que requeiram tempo para absorção, o ritmo incessante acostuma-nos com o que talvez fosse muito bem a mente da protagonista: um fervilhar de proposições, pensamentos, poetizações, ironias afinadas, discursos solenes.

Há ainda uma outra cena em que as palavras dão pistas para a estética reinante: Vrylim Buffam, amiga confidente e de verve endiabrada – outra, senão a principal personagem a proferir um fluxo ininterrupto de ironias e caprichos deliciosos –, diz a Dickinson, rebatendo uma palavra desta usada para si mesma: “você não demonstra, você revela”. Revelar, descortinar, trazer à luz, transparecer: eis talvez o conjunto de vocábulos mais propício a Terence Davies. A consciência de quadro, de tableau vivant, do diretor supera o olhar apurado sobre a incidência da luz, uso das cores ou posicionamento milimetricamente arranjado: inscritos pelas quatro arestas, agora é como se seus personagens cruzassem uma temporalidade outra, flutuassem diante de um tempo-além incrustado que tanto os preserva na recriação temporal que os pertence quanto os impulsiona para um aspecto de passageiros. É como se ele dissesse: esta não só não é a poetisa, seus irmãos e pais, mas, adicionado à negação ficcional para compensá-la, é algo mais, é um lampejo destes mesmos personagens, é eles em sua brevidade tão fugaz quanto foi sua passagem real pelo mundo. Só que há também o acréscimo da fotografia. A transição temporal dos rostos jovens/adultos da família para suas feições adultas/velhas é operado sobre o artifício da sobreposição imperceptível: lentamente, diante de nossos olhos, câmera aproximando-se segundo a segundo, enquanto as mudanças vão se operando, seus traços envelhecem. O curioso é que isto se dê numa sala de fotografias típica ao século XIX, mas menos surpreendente é que Davies saiba que apenas o fotográfico revela. É só ao olhar para uma fotografia que dizemos: “veja como cresci”; só o fotográfico revela (desvela) a mudança.

Não há centralidade de evento na trama que não perpasse seu próprio retraimento: a amiga se casa e se muda para longe, a paixão pelo reverendo é sufocada, a publicação de seus poemas é irregular e alterada, o conflito religioso é insolúvel. “Esta é minha carta ao mundo que nunca escreveu para mim”, dirá Emily em seu leito de morte, ou, muito possivelmente, post-mortem. Da garota que recusou tanto a salvação quanto a permanência no colégio de freiras para buscá-la, e preferiu ficar no centro, sozinha, diante da freira-chefe; passando pela mulher passional, vibrante, curiosa em relação ao mundo e seus componentes, até a consciência, já mais velha, em soluços desesperados de choro, da própria inveja, auto-depreciação, drama e repulsa a tudo o que não fosse elevado (aos seus padrões) – só quando se reconheceu como construtor de um retrato que se acende e se apaga o cinema pôde tocar as vidas mais sensíveis e de maneira mais complementar a seu próprio estatuto. Não coincidentemente, em seu término, o rosto de Cynthia Nixon se transforma no da poetisa; não coincidentemente, as elipses temporais tornam quase indiscernível a passagem do tempo: ainda que tudo seja pincelado sobre o esqueleto de uma vida alternadamente amarga, Dickinson é a transmutação de um rosto e de um alcance ao mundo que se perpetua na matéria de todo aquele que se sensibiliza com o encontro da poesia.

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