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Alma em Pânico

(Angel Face, 1953)
7,9
Média
47 votos
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Sua nota

Críticas

Cineplayers

Entre a sombra e o novo

9,0

Quando pensamos em Escravos do Desejo (Of human bondage, 1934) e Fuga do Passado (Out of the Past, 1947), uma das primeiras imagens que pode nos vir à mente é a figura da femme fatale. Quem é essa mulher que quase sempre aparece no noir? O que ela traz para o cinema hollywoodiano? Ao discutir Escravos do Desejo, eu mencionei a personagem de Bette Davis como uma aparição então incomum desse tipo de personalidade; e, com Fuga do Passado, vimos, na revisão do gênero noir empreendida pelo filme também uma revisão dessa alegoria. Mas é Alma em Pânico (Angel Face, 1953), dirigido pelo muito subestimado Otto Preminger, que concede a sua femme fatale, interpretada por Jean Simmons, uma outra narrativa e, assim, um outro propósito e uma mais complexa construção psicológica.

O filme começa com um incidente (talvez acidental, talvez criminoso) em uma mansão de Beverly Hills. Catherine Tremayne (Barbara O’Neil), a segunda esposa do milionário Charles Tremayne (Herbert Marshall), quase morre sufocada após um vazamento de gás que atinge o quarto onde dorme. O motorista de ambulância que vai ao socorro dessa abastada senhora é Frank Jessup (Robert Mitchum), e o rapaz é interpelado, ao fim do seu trabalho, por Diane (Simmons), filha de Charles e enteada de Catherine. A moça, levemente misteriosa e sombria, então atrai o motorista e o convence a trabalhar para a sua família.

A trama de crime aqui se desenvolve com a ausência quase completa de outras figuras típicas do gênero, como o detetive, o policial ou mesmo criminosos de carreira. O personagem vai se envolvendo na situação de maneira muito incidental, como alguém que entrou por acaso em um ambiente aparentemente inocente, mas cheio de violência e ressentimento. Nesse sentido, o filme se assemelha a Pacto de Sangue (Double Indemnity, 1944), embora Frank Jessup seja um cûmplice muito mais relutante que o Walter Neff de Fred MacMurray.

Mas é de fato a personagem de Jean Simmons que guarda a alma do filme, sugerida no título em português. Sem a fantasia de sedução incorporada por Barbara Stanwyck em Pacto de Sangue, sem os desejos gananciosos de Jane Greer ou a impertinência de Bette Davis, a Diane de Simmons se torna uma figura tão verossímil que podemos confiar que a encontraremos em algum lugar fora do cinema. Diferentemente dessas outras femme fatales, produtos muito demarcados da fantasia hollywoodiana, o desejo de Diane se desenvolve em rancor e depois, então, em culpa, e nenhum desses momentos dela se resolve de forma muito simples. O filme traz com ela aquilo que podemos chamar de um realismo psicológico, uma complexidade presente nas motivações e escolhas que compõem a sua trama interna.

Essa construção produz em Alma em Pânico uma outra postura sensível diante de um texto que ainda fala, fundamentalmente, sobre um crime. O crime em questão, afinal, é resolvido para o espectador muito antes do fim do filme – o que se encena a partir de então é o modo muito penoso como cada um dos dois personagens vai lidar com isso. Penso, especialmente, em uma sequência de Simmons circulando por entre a mansão vazia – sem cadáveres e sem fantasmas, mas assombrada por essa angústia do que já não está presente. Essa sequência me parece ser, inclusive, um dos momentos mais formalmente criativos do noir hollywoodiano e uma perfeita conclusão para uma bela construção de personagem.

Alma em Pânico, o filme mais tardio dentre os que relatei até agora, encontra uma Hollywood já bem diferente daquela de onde saiu Escravos do Desejo sejamos justos. As ansiedades (formais, estéticas e políticas) a que o cinema estadunidense responde são outras. Preminger faz aqui um noir do fim do gênero – e sombras de outro tipo se espalham pelas produções do país. O Macarthismo tomou pra si o controle das ferramentas ideológicas do cinema, perseguindo roteiristas, diretores e atores e produzindo um novo código moral dentro do (já muito rigoroso) código moral vigente. Libertar-se disso significa se abrir para uma desconfiança com tipos, figuras e formas há muito tempo estabelecidas em Hollywood, o que, junto com outros elementos, ajudaria a dar início a uma crise criativa de quase uma década no sistema de estúdios. A RKO, que produz Alma em Pânico, não chega sequer aos anos 1960. Este é um filme na fronteira de duas concepções de cinema, entre a familiariade do noir e a singularidade, o espanto e o desconforto que vão reescrever o gênero com o prefixo neo.

Texto integrante da série Vestígios da Era de Ouro

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