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Críticas

Cineplayers

Um filme americano com pitadas de literatura russa.

6,0

Sempre dá para refogar as sobras e transformar os pratos de ontem em algo com cara nova. Talvez não seja nobre, mas quem não passou por isto, ainda há de viver! Seja reutilizando um texto ruim ou aproveitando as roupas antigas dos pais para parecer 'in'.

Sophie Bartes faz sua estréia na direção de longas de maneira irregular mas corajosa, já que escolheu uma história cujo mote  une dois dos maiores sucessos comerciais nessa linha de especulações sobre a alma humana: Quero Ser John Malkovich e Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças. A dita coragem apresentada pela diretora vem do tempero usado nesta mistura em que dois escritores da língua russa são chamados pra uma ajudinha. Anton Tchékhov aparece citado textualmente, através da montagem teatral de Tio Vanya, enquanto Nikolai Gogol surge como livre inspiração para o tema do tráfico de almas, numa referência a Almas Mortas, livro cuja história - apesar do diferente tratamento - guarda alguma irmandade com o roteiro escrito por Bartes.

Desta vez Paul Giamati interpreta uma versão – insossa – de si mesmo e brinca com seu próprio prestígio para criar um personagem que se sabe talentoso, mas também algo amargurado. Na busca pela melhor perfomance do clássico personagem tio Vanya, Paul se vê esmagado por sérias angústias que o impedem de expôr o seu melhor.

A partir desta questão é que se desenrola o novelo da trama, cujos caminhos é preciso seguir com atenção para não se perder no emaranhado de referências que logo estarão a léguas de distância do problema original. Entra em cena a clínica de 'extração de almas' onde somos apresentados à singularidade dos formatos que cada alma assume após sua retirada (e o quiproquó do formato grão de bico parece ter sido inspirado num sonho com Woody Allen, ao que somamos mais uma referência de Barthes). Outra questão se apresenta e a idéia de vazio existencial ganha uma aplicação fanfarrona que garante uma das melhores cenas do filme: tio Vanya totalmente esvaziado e ridicularizado por um Paul Giamatti com ares de Cigano Igor.

Uma figura chama atenção na tela. Nina (Dina Korzun), a mula que trafica almas para um depósito mequetrefe na Rússia não passa despercebida, seja pelo cabelo loiro-descolorido ou pela facilidade natural com que desanda a falar russo como se nada fosse, empregando um tom meigo na voz que descontrói a dureza desta língua. A ela pertencem as cenas poéticas surgidas dos resíduos de lembrancas que  Nina vai acumulando ao longo de sua atividade como depósito temporário de almas. Nos olhos e no figurino da personagem é possível enxergar a trajédia de quem já viveu coisas demais.

Almas à Venda erra a mão no ritmo após a reviravolta, e a ida da narrativa para a Rússia perde fôlego. A tradução das influências cinematográficas também é problemática. As cenas na clínica do Dr. Flintstein (David Strathairn) são construídas com uma energia tão próxima as da Lacuna Inc de Brilho Eterno que é fácil se distrair e perder os diálogos, como se estivéssemos assistindo algo repetido que merece pouca atenção. Mesmo assim, alguns detalhes levantam a bola do filme a ponto de  querermos salvá-lo de uma catástrofe: o uso dos clichẽs sobre as doenças da alma trabalhados com humor e a banalização comercial na resolução destes mesmos problemas são o que o roteiro traz de melhor. Barthes erra e acerta na construção da personagem cuja alma servirá temporariamente a Giamatti, e ao mesmo tempo em que não consegue desenvovê-la, deixa dito através dela que uma pessoa cuja vida é absolutamente comum também pode ter vivências incríveis.

Tentando quitar seus débitos com Kaufman, Allen e Tchékhov, Barthes ficou devendo, mas pareceu mostrar que tem lastro para bancar projetos mais felizes no futuro.

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