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Críticas

Cineplayers

Sobre a licença para se fazer cinema.

9,5

Para o público que for ao cinema assistir Amantes, será demandado pelo próprio filme uma concessão. Ou melhor, duas. Em dois momentos distintos, os personagens romperão o limite poético da narrativa e pedirão sua licença para serem aquilo que devem ser e a sua compreensão se faz necessária para que a experiência do filme se torne completa. Para os leitores que estão lendo este meu primeiro texto para o site peço também uma concessão. Ou melhor, duas. Uma delas, para que tenha o direito de parecer extremo, exagerado porém verdadeiro, e afirmar que o filme em questão é o maior estudo de personagem já realizado no cinema. E a segunda é uma licença para um texto de amor, sem regras e grandes teorias rebuscadas, pois não há outro modo de escrever sobre Amantes, esta experiência única.
 
Eu amo este filme! Ele representa a maior das inovações no circuito em muitos anos, pois acima de qualquer coisa é um todo sensorial. Sou capaz de citar aqui outro filme sensorial ao extremo feito recentemente, O Pântano, de Lucrecia Martel, mas a diferença entre ele e o filme de James Gray é que Martel se arma da estética em todos os sentidos para transportar quem vê para dentro de sua narrativa. Gray se arma de um olhar único, a câmera que não permite um momento sequer que não registre Joaquin Phoenix/Leonard. A barra é necessária, pois Phoenix imerge e dele emerge Leonard, sendo ambos o mesmo. Não há, ao longo de quase duas horas de filme, uma única cena em que Phoenix não apareça, não centralize, não faça com que o mundo ao redor funcione à sua órbita. É um filme sobre um homem e James Gray o realiza concedendo ao lado oposto da tela toda informação necessária sobre o que vemos. E o único modo disso ser feito é refletindo em cada indivíduo do lado de cá a idiossincrasia do objeto de estudo; somos todos aquele homem e tudo que ele sente, sentiremos também, em sua totalidade.
 
Leonard, o objeto resumido em tela, é um homem que nos é apresentado já em seu fim. O salto no mar gelado, logo no início do filme (curiosamente, uma imersão/emersão), pode ser tida muito mais como um desesperado ato para viver novamente, que uma tentativa de suicídio em si, mesclando um ideal de fim e começo como variáveis indefiníveis. Se na própria linha narrativa do filme o começo parece fim, Gray já nos coloca a idéia do círculo, a mais aterrorizante das figuras geométricas (primeira aqui apresentada), aquele de onde não se sai, não se muda de direção. Amantes é um filme de gênero, onde o amor é a força motriz e o ciclo vicioso do processo de se apaixonar é a tragédia anunciada no romance, inspirado em Dostoiévski e seu Noites Brancas (também um filme belíssimo, adaptado por Luchino Visconti em 1957, diretor que Gray idolatra). Da paixão nasce a idéia do amor, da necessidade do amor nasce a projeção, da projeção nasce a compulsão pelo “estar amando” e por fim brota a obsessão pelo ser amado. Leonard é um homem que depende de remédios para controlar sua depressão, que voltou a viver com os pais após ter sido abandonado pela ex-noiva e que pensa na morte durante todo o tempo de sua quase vida. Os pais, por sua vez, querem que ele se envolva com Sandra (Vinessa Shaw), filha de um possível futuro sócio do pai no ramo das lavanderias à seco (a vida é tão distante que nada ali se molha, a não ser Leonard, desde a sufocante primeira cena). Leonard não se opõe à vontade dos pais e aceita conhecer Sandra, mostrando seu respeito pela família (o tema principal em qualquer filme de Gray, independente do gênero). No meio do caminho, surge Michelle (Gwyneth Paltrow), a vizinha "perturbada" de Leonard (condição na qual ele se assumirá no futuro para ela, em confissão). No meio do caminho, surge o amor. No meio do amor, surge um triângulo, um losângo, um absurdo geométrico de instabilidade sentimental, de impossível definição e cálculo. Sandra que ama Leonard, que se apaixona por Michelle, que ama um homem casado que aparentemente nunca terá. Sandra é a quietude e o conforto de alguém que tem a aprovação de uma entidade (o primeiro beijo dela e Leonard se dá diante de uma parede de fotografias da família). Michelle é o fruto proibido, o Leste do Paraíso idealizado. Leonard é então um homem dividido entre o impossível: o amor, o seguimento e o retorno (outro tema básico na filmografia de Gray), retorno este que normalmente se dá para a família (ou seria o berço?); de onde saímos, voltaremos e novamente está colocada a idéia de um círculo universal.  A única coisa que se pode atestar é que em tela temos um homem preso, seja qual for a circunstância.
 
Leonard está preso em sua existência, da qual tenta se libertar nas tentativas de suicídio, está preso em sua realidade, da qual tentar sair ao se montar para Michelle como um ideal de perfeição. Numa das idas à Manhattan, Gray focaliza o rosto de Leonard no vidro embaçado do trem, um esboço do que seria um homem completo. Ele tentar ser mais para Michelle, mas no final das contas continua sendo o cara que não pode pagar um taxi na volta pra casa. Os personagens que sempre estarão em movimento, parecerão presos eternamente na impossibilidade das libertações, seja de suas crenças, seja de seus sentimentos. Mesmo quando Leonard tenta seguir um relacionamento com Sandra, após a decepção com Michelle, a prisão é explicitada. No bar mitzvah do irmão de Sandra, Leonard fotografa a ocasião em preto e branco (um grande recurso de elipse de Gray, demonstrando a passagem de tempo e do relacionamento entre Leonard e Sandra) e recebe um telefonema de Michelle. Ele retorna a ligação num salão vazio, distante de todos, colocado em contraste de luz, onde surge como um mero contorno. Ele não é nada, novamente, mas parece protegido naquele salão. Do lado de fora, uma chuva torrencial e trovões que anunciam uma tempestade. É o retorno para Michelle. Neste filme, ainda mais que em Os Donos da Noite, Caminho sem Volta e Fuga para Odessa, James Gray é um virtuoso sutil. Cada um desses enquadramentos, ainda que revelando um cuidado extremo com a simplicidade, se provam rigorosos planejamentos da observação, visando a compreensão concreta dos sentimentos que estão explodindo e colidindo entre os personagens. A cautela é uma das táticas de Gray nessa abordagem, nos indicando um olhar, mas exigindo um esforço para que cheguemos até aquelas pessoas. No melhor dos exemplos de tal artifício, está a magistral seqüência do lado externo da boate, quando Leonard tenta consolar Michelle pela sua desilusão com o amante. Leonard se humilha em cena (humilhação que se repetirá na seqüência no quarto de Michelle, enquanto vê a discussão entre ela e o amante atrás de uma porta) e o melhor que podemos fazer é tomar distância dessa humilhação, em respeito ao próprio personagem. O resultado é apoteótico e terrível.
 
O anúncio da tragédia está feito desde o primeiro frame do filme, mas com o tempo vamos nos tornando cúmplices dos sentidos de Leonard e isso parece mascarar nosso próprio entendimento. Torcemos para que as barras de cada uma de suas celas sejam realmente rompidas - ainda que as evidências provem o contrário. Durante a confissão de seu amor e condição para Michelle, no terraço do prédio, acontece o ponto de mudança primordial do filme. Ele diz o que ela precisa ouvir, ela olha para a platéia e pede autorização para embarcar naquela mentira e literalmente é requisitada a nossa compreensão e aceitação. Michelle e Leonard constroem outra prisão, a consumação da mentira projetada. O catastrófico caminho que o filme toma prova a teoria de que Leonard, fosse qual fosse sua opção, estaria condenado à prisão eterna. Ao final, novamente o público é colocado no estado de cúmplice, dessa vez num pedido conformado para que seja permitido que este filme termine com o horror absoluto de terem que ser felizes para sempre.

Comentários (1)

Leonardo Melo | quinta-feira, 10 de Abril de 2014 - 23:28

Um dos meus filmes preferidos!!

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