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Amazing Grace

(Amazing Grace, 2018)
7,3
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Críticas

Cineplayers

Quando Pollack filmou Aretha

7,0

Lançado no primeiro dia de junho de 1972, Amazing Grace de Aretha Franklin se tornou um álbum icônico por vários motivos. Como explicam as legendas do documentário homônimo de 2018, Aretha na década de 70 já era chamada Lady Soul, com onze sucessos consecutivos em primeiro lugar nas paradas e cravando clássicos da música popular como I Never Loved a Man (The Way I Love You) e I Say a Little Prayer. O que já não era tão compartilhado entre a memória do público foi seu início, como cantora gospel na igreja do pai, o pastor batista e ativista pelo direito dos negros C. L. Franklin. Gravado ao vivo na Igreja Batista Missionária Novo Templo de Los Angeles, o disco mostrou para o grande público as raízes da cantora, com o espetáculo para poucos gravado em duas noites pelo cineasta Sydney Pollack (A Noite dos Desesperados), contratado pela Warner Bros.

A filmagem do concerto, agendada para ser lançada em 1972 ao lado do clássico blaxploitation SuperFly, acabou nunca vendo a luz do dia à época por conta de problemas técnicos. Quando Pollack morreu, em 2007, o produtor Allan Elliot comprou o material bruto para si. Tentou lançar o filme anos depois, porém, Aretha Franklin o processou por usar sua imagem sem permissão, em um entrevaro judicial que durou alguns anos. É curioso que a lenda da soul music precisou falecer, em 2018, para que finalmente o produtor entrasse em acordo com a família e pudesse lançá-lo, mostrando a cantora em seu auge.

É curioso como o filme, montado por Jeff Buchanan (Ela, Barry), se identifica com o espírito da cantora: a mesma pouco interage com o público, deixando as apresentações e gracejos por conta do pastor James Cleveland, conhecido criador do gospel moderno, nascido da fusão entre gospel tradicional, soul, pop e jazz, que funciona como instrumentista e mestre de cerimônias. Da mesma forma, o longa apenas em pouquíssimos momentos foca em momentos de "bastidores" e fica quase que puramente no evento.

O filme, em si, serve como uma viagem encapsulada do tempo: quase como se abrissem uma janela para um outro período que não tínhamos tido acesso até então - mais ou menos como o The Rolling Stones Rock and Roll Circus, lançado apenas décadas depois de sua gravação. E é um testemunho do poder não só de Aretha Franklin, mas também da representatividade da música gospel para a comunidade negra: é frequente que, em meio aos agudos disparados por Franklin, membros do Southern California Community Choir se levantem para urrar juntos de empolgação, ou que o público comece a dançar em momentos mais agitados ou que o pastor Cleveland precise parar por um momento para deixar as lágrimas rolarem, sob os aplausos do público.

Ao imergir na experiência, é difícil não se sentir emocionado, em alguns momentos, com a música que definiu o século vinte, em matéria de estrutura, traduzido para o pop na década de sessenta, com a explosão do soul, inclusive por intermédios de Aretha Franklin: os backing vocals, os refrãos empolgantes, as frases esticadas, o ritmo marcado, estilisticamente repetitivo, tudo para organizar uma espécie de transe ou êxtase religioso através de uma musicalidade rica e vibrante, ainda parâmetro para compositores de hoje.

O diálogo com o moderno também pode ser visto na rendição meio gospel e meio secular de You've Got a Friend, de Carole King e tornada famosa por James Taylor, e ressaltado pelo pastor e pai coruja C. L. Franklin, um homem de importância no seu tempo que destaca a importância da filha para o cenário musical mundial e para a cultura secular enquanto lembra de suas raízes religiosas. De sua maneira discreta e particular, Aretha era examente isso: uma espécie de ponte entre o secularismo e o religioso, entre o amor pelo humano e o amor pelo divino, entre progressismos e conservadorismos, sua voz sintetizava a dor e a transcendência de sua comunidade para uma espécie de música que acabou tomando o mundo.

Pollack sabia da importância do ícone que estava filmando, e não é incomum ver inúmeros closes quando Aretha estica as frases, e incontáveis planos de reação emocionados; ou planos mais compostos, fora dessa urgência, que organizam uma certa ambição de sinfonia gospel, com cortes ritmados, telas divididas que atendem tanto aos anseiso da Nova Hollywood, que esperavam uma maior carga de realismo, mas ao mesmo tempo um apelo às vozes mais tradicionais do recinto, que também tinha feito história ao seu modo.

Religião, não podemos esquecer, vem do latim religare, reconexão entre o homem e o divino e todo o clima quente, urgente, com câmeras desfocando, perseguindo de maneira tremida famosos da plateia (como Mick Jagger, discreto, quieto e apenas acompanhando com palmas, evitando chamar atenção) e contemplando arroubos nos lembra daquele poder transcendental que só a música é capaz de ter: de, por alguns segundos, só importar o som feito entre aquelas quatro paredes, aquelas pessoas, aqueles rostos transpirando paixão por algo maior. Não à toa, não é uma cena difícil ver o próprio público da sessão empolgar e seguir com as palmas e gritos, pois como nos melhores documentários de observação, de alguma maneira, nós também somos parte daquilo.

Crítica da cobertura do 21º Festival do Rio

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