Saltar para o conteúdo

Críticas

Usuários

Uma breve análise sobre a trilogia de Richard Linklater, sobre Jesse e Celine, e sobre o tempo.

9,0

Cabe ao cinema, entre tantos estímulos que vão desde a simples diversão à reflexão da vida, a singela tarefa de eternizar memórias e momentos em frames que se incorporam às nossas próprias recordações. É comum para nós, na condição de espectadores, nos apegarmos aos personagens de um filme querido, e guardá-los dentro do coração como se fossem pessoas reais, como se os conhecêssemos da mesma forma como conhecemos algum amigo íntimo, talvez ao ponto de imaginar o que será da vida deles após o fim do filme, mesmo que isso pareça infantil. De certa forma, conseguimos crescer com eles, e foi assim para muitos cinéfilos ao lado de Jesse (Ethan Hawke) e Celine (Julie Delpy), o casal que se conheceu lá no meio dos anos 1990 em Antes do Amanhecer (Before Sunrise, 1995), em Viena, e voltou a se encontrar por acaso em Antes do Pôr do Sol (Before Sunset, 2004), em Paris. Agora eles estão juntos mais uma vez, na Grécia, em Antes da Meia-Noite (Before Midnight, 2013) e nós estamos lá com eles de novo, prontos para ganhar uma nova lembrança.

Quando se conheceram em um trem, algo de muito raro aconteceu entre Jesse e Celine. Nasceu instantaneamente um laço entre os dois, de forma que não pareceu uma ideia absurda para eles descerem do veículo para passarem o dia juntos conhecendo Viena, ao mesmo tempo em que se conheciam. Mais do que uma história de amor, Antes do Amanhecer propunha algo muito verdadeiro e diferente com a ajuda do cinema. Durante um pouco mais de uma hora, o filme discutia através das figuras de Jesse e Celine toda uma gama de assuntos que condiziam com o universo jovem da época, desde as vontades e sonhos até as inseguranças e frustrações, alternando entre uma visão mais romantizada e uma mais realista sobre esses mesmos temas. Obviamente, olhando pelo ponto de vista prático da situação, o filme condensou em uma hora e meia toda a realidade de uma geração, num jogo muito sutil de extensão temporal. Era como resumir duas vidas em duas horas, e dentro dessas duas horas atingir o tempo fictício de 24, que por sua vez são tão bem aproveitadas a cada minuto que podem ser projetadas em um tempo maior capaz de parecer toda uma vida na lembrança. Em suma, aquela história decorre para nós em alguns minutos, enquanto para Jesse e Celine leva um dia todo, mas na memória tanto nossa quanto deles há uma sensação de que durou todo um período da vida, ou que pelo menos representou tal período.

O mesmo voltou a acontecer com Antes do Pôr do Sol, no reencontro parisiense dos dois, que de tão casual, pareceu até um empurrãozinho do destino. Mais uma vez o tempo foi aplicado em diversos níveis de valor. Para Celine e Jesse, de novo, tudo correu em um dia, para nós uma hora e meia, e para todos, em efeito maior, foi toda uma vida, por meio de diálogos longos sobre assuntos agora mais adultos, sobre o amadurecimento e sobre as memórias de um momento na linha do tempo ao qual nós não tivemos acesso. Para nós parece importante entender sobre esses misteriosos nove anos que separaram os dois dias em que Jesse e Celine tiveram seus caminhos cruzados, enquanto para eles é ainda mais importante entender cada um o que o outro viveu nesse período, e como será dali pra frente, e como eles mudaram tanto ao mesmo tempo em que parecem ainda os mesmos adolescentes de antes em muitos aspectos.  Os conflitos são agora maiores, eles já não são mais tão jovens e, portanto, não há tempo nenhum a perder. É mais um capítulo que entra para a memória deles, mais um fragmento de vida resumido em celuloide, e que unido com os momentos anteriores do primeiro filme, forma um novo filme, do qual eles nem se dão conta que existe, mas que para nós já virou uma bela recordação.

E são agora mais nove anos, só que dessa vez não para que Celine e Jesse se reencontrem, mas para que nós reencontremos o casal. Em Antes da Meia-Noite, o que temos é um casal que permaneceu junto desde a última vez que tivemos contato, e que, portanto, construíram toda uma vida lado a lado, agora com filhas, crise da meia idade, brigas, reconciliações, e mais uma tentativa de verbalizar os sentimentos mais abstratos e inexatos que podem existir numa relação a dois. Mais engraçado, charmoso, dinâmico, este terceiro episódio aposta numa fórmula um tanto diferente daquela dos dois outros filmes, englobando um nicho que vai além do casal central, e alcançando personagens periféricos, e a influência destes sobre a relação de Jesse e Celine. Deixou de ser uma relação entre o espectador e o casal do filme, e agora nosso próprio envolvimento com os personagens é comprometido com situações que destoam das que já estamos acostumados. Foram anos que exigiram a adaptação de Jesse, de Celine, e de nós mesmos, duas vidas que couberam numa ficção de dezoito anos de duração, mas que para nós, por meio do cinema e no nosso tempo, não passa de cinco horas no total.

A verossimilhança encontrada em Jesse e Celine talvez sempre tenha sido o maior atrativo para o público, que através dos anos pôde ir se identificando com os conflitos dos dois, tanto a nível pessoal, como em uma relação a dois. Nesse meio tempo, os próprios atores, Ethan Hawke e Julie Delpy, se apegaram tanto aos seus personagens, que dar continuidade ao projeto passou a ser uma necessidade consequente (inclusive por participar na produção e no roteiro do segundo e do terceiro capítulo), e podemos notar isso no entrosamento mais natural entre os dois nessa terceira parte, na evidente amizade entre eles por trás da encenação, e na satisfação de terem conseguido, junto com Jesse e Celine, a aprender um com o outro e a criar esse laço compartilhado um pouquinho por todos nós. Ao todo, se mostrou uma trilogia de grandes roteiros, sem pontos baixos e sem favoritos, já que cada individual espectador muito provavelmente se identificará com um filme diferente de acordo com a fase que estiver passando.

Conhecer Jesse e Celine pode ser uma experiência de anos, pode ser uma experiência de horas, ou uma experiência que não pode ser contabilizada em números ou em tempo real, muito menos ser dimensionada em um único espaço físico, já que começamos na Áustria e vamos parar na Grécia. Afinal, estamos falando de cinema, e somente ali dentro de uma tela esse deus poderoso consegue ser suspenso, estendido a ponto de englobar todos os conflitos de um ser humano desde sua juventude até sua idade de maturidade, mas de longe tão curto se comparado com o tanto que temos de viver na realidade para alcançar tamanhas experiências. Nessa suspensão momentânea a que estamos submetidos quando analisamos uma trilogia tão bela quanto essa dirigida por Richard Linklater, o que ficam são as lembranças de ter vivido a experiência de crescer ao lado de Jesse e Celine, aprendido junto com eles e envelhecido junto com eles. No fim, é como se a vida coubesse inteira no período de uma ou duas horas de um filme, ou que talvez o filme seja capaz de se estender por toda uma vida por meio das lembranças que produz. Qual das duas opções seria a correta? Certamente a nossa resposta seria diferente da reposta de Jesse e Celine, mas é tudo uma questão de perspectiva, e no final as recordações nossas e deles seriam as mesmas.

Comentários (5)

J Correa | sexta-feira, 14 de Junho de 2013 - 20:34

Ótima critica!

Patrick Corrêa | sexta-feira, 14 de Junho de 2013 - 21:02

Gostei da crítica, mas acho que os comentários sobre os longas anteriores tomaram muito espaço.
O novo filme merecia ser um pouco mais analisado.

Heitor Romero | sexta-feira, 14 de Junho de 2013 - 21:50

O foco do meu texto é uma análise da trilogia, logo haverá uma crítica exclusiva para o terceiro feita pelo Torres.

Patrick Corrêa | sexta-feira, 14 de Junho de 2013 - 23:20

Entendi que essa era a proposta, mas fiquei curioso por mais comentários seus sobre o terceiro filme, Heitor. 😎

Faça login para comentar.