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Críticas

Cineplayers

O que nos faz humanos.

6,5
Em seu novo filme, Antes que Tudo Desapareça (Sanpo suru shinryakusha, 2017), Kiyoshi Kurosawa imagina sua própria versão de mundo invadido por alienígenas. Trabalhando sempre dentro do cinema de gênero, mas através de uma exploração limítrofe e quase subversiva dele, o diretor desta vez vai se aventurar pela ficção-científica e fazer dela um pretexto para tratar dos temas que lhe são mais caros, como a desumanização gradual do homem no mundo moderno. 

A história parte de três personagens extraterrestres que estão infiltrados na sociedade humana, tentando conhecer e se integrar aos hábitos diários dela para entender melhor o funcionamento de tudo e assim poder planejar em detalhes uma futura invasão. Sua comunicação não é baseada em palavras e há alguns conceitos que eles não são capazes de assimilar através de simples explicações, como família, posses, trabalho e, em especial, o amor. Para conseguir absorver esses conceitos, eles usam de seus poderes psíquicos para roubá-los da mente de humanos comuns, mas o custo disso envolve deixar suas vítimas em estado de deficiência cognitiva/mental. Por exemplo, se roubam o conceito de família da mente de alguém, essa pessoa continua a viver, porém não mais compreendendo por si o significado de família. 

A fim de conseguirem se misturar sem chamar atenção, eles precisam de “guias”, ou humanos comuns a quem não fazem mal, mas que lhe ajudam a entender melhor a linguagem e o funcionamento das coisas. Enquanto dois dos alienígenas contam com um jornalista como guia, o terceiro se infiltra no corpo de um homem casado e usa a esposa dele para guiá-lo. O filme se divide nessas duas narrativas e através de cada uma decide explorar inúmeros temas distintos. Na trama do marido/invasor e da mulher, Kurosawa vai enveredar por uma abordagem sentimental sobre a fragilidade de um casamento em crise e uma esposa lutando para encontrar um meio de se reapaixonar pelo marido que a traiu. Uma vez ciente de que o marido está de fato possuído por um alienígena, ela de repente percebe uma oportunidade única de reconstruir a relação e ensiná-lo do zero a ideia do companheirismo, da família e do amor. Na outra ponta, os outros dois extraterrestres, ocupando os corpos de um casal de adolescentes, procuram construir uma antena capaz de iniciar a invasão de seu planeta natal. O jornalista que a princípio é cético sobre essa história absurda, logo percebe a veracidade dela e aos poucos se deixa levar pela ideia de que talvez a destruição da raça humana não seja uma ideia assim tão horrível. 

Kurosawa trata dessas histórias paralelas através de uma mistura cada vez mais estranha de humor, terror, romance, drama e sci-fi. Se por vezes, no meio dessa salada toda, enxergamos o gênio do diretor em cenas primorosas (como o chefe da esposa sendo tocado pelos poderes psíquicos do alienígena e perdendo sua razão conforme o quadro se escurece), na maior parte do tempo temos um cruzamento bastante heterogêneo de ideias que não se casam ou se complementam. Isso influencia em um ritmo irregular, começando bastante lento e contemplativo, para depois ir se acelerando em um crescente cada vez mais afobado e atropelado. Em dado ponto, ele alcança um patamar de absurdo tão impossível, que não tem mais como se levar a sério qualquer que seja o conceito trabalhado pelo diretor. Perto do fim, ele se arrisca em um discurso vomitado sobre o amor ser a única esperança para a salvação do mundo que beira o piegas, ou mesmo o ridículo. 

Em Antes que Tudo Desapareça, a ideia central de Kurosawa é fazer uma análise do ser humano quanto subtraído de algum conceito universal, como a família e o trabalho. As noções de sociedade e suas instituições são questionadas e cabe nesse meio até uma crítica perdida aos EUA e suas intervenções militares em assuntos internacionais que não lhe cabem. Os personagens que passam por esse tipo de lobotomia, perdendo seus conceitos mais básicos, perdem também qualquer noção de civilidade e passam a se comportar de forma primitiva. Curiosamente, no entanto, um deles tem seu conceito de posse/pertencimento roubado por um dos alienígenas e, ao invés de ficar louco e descontrolado, acaba mais esclarecido, como se estivesse livre de algo que antes o escravizava em uma visão pequena de convívio social baseada em acúmulo e divisão de bens. Da mesma forma, a esposa, na ânsia de retomar seu casamento abalado, procura convencer o marido/extraterrestre que o amor é o único conceito que de fato define o ser humano como diferente de qualquer outra espécie de vida.

Em vários filmes anteriores, Kurosawa trabalhou de alguma forma com uma ideia similar. Em Cure (Kyua, 1997), por exemplo, ele faz um filme de psicopata em que a loucura é tratada em um nível tão abstrato e assustador, que o vilão da história mal consegue ser assimilado como um ser humano. Sem identidade, memória, empatia ou qualquer outra característica viva, ele transita pelo filme como uma não-presença, uma não-vida que absorve tudo de humano que há a seu redor e leva as pessoas a perderem qualquer senso e a cometerem crimes hediondos. No cinema de Kurosawa, o mal está no senso de humanidade perdido, no homem que de tão absorvido pelo meio acaba morto mesmo em vida. Agora nesse cenário meio Vampiros de Almas (Invasion of the Body Snatchers, 1956), ele reforça essa ideia com alienígenas carentes de qualquer sentimento humano, mas que não se distanciam tanto assim dos que encontram aqui na terra, como o personagem do jornalista e seu senso de moral e civilidade sendo esvaziado a cada nova cena, mesmo não tendo sido vítima de nenhuma lobotomia. 

Kurosawa gosta de transitar nos limites, de trabalhar com o choque provocado pela estranheza e pela total falta de sentido e lógica que surgem a partir de situações inicialmente cotidianas. Aos poucos, ele dissolve em torno do próprio eixo todos os seus elementos até não sobrar nada concreto. Se essa ideia de horror funciona tão bem em outros filmes seus, em Antes que Tudo Desapareça ele se perde e é engolido pela própria criação. Ainda que genial em momentos isolados, é um todo muito bagunçado e sem a sofisticação característica do diretor. A brincadeira com um cinema de gênero tão popular talvez o tenha deslumbrado em excesso, mas seja como for, seus créditos ainda são altos e sua ideia sobre a perda do fator que nos torna humanos continua mais viva e assustadora do que nunca. 

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