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Críticas

Cineplayers

O dissabor da miséria inexorável.

9,0
Marco do realismo social italiano enquanto conjuntura da miséria do país imediatamente o pós-guerra, Arroz Amargo é um expoente social que vigora junto ao neorrealismo devido seu apresso ao tangível, numa concepção que sugere inferências do cinema documental. Escrito e dirigido por Giuseppe De Santis – o roteiro teve contribuição de Mario Monicelli, que lançava naquele mesmo ano seu segundo longa, a comédia Totó Procura Casa (Totò Cerca Casa, 1949). A obra de De Santis é um clássico que teve repercussão mundial tempos após seu lançamento, quando finalmente venceu a censura.

Em suma, visa mostrar a vida das “mondines”, nome dado às mulheres cultivadoras de arroz. E são justamente as mulheres as envolvidas com a plantação, uma vez que eram consideradas melhores e sensíveis ao trato durante a apanha. Nesse viés, o roteiro traça uma representação que vai além desse apontamento, já que traz a fertilidade como cerne alegórico. Não à toa, uma dessas mulheres está grávida.

O que vemos é uma Itália ruída, com a crise instalada e pessoas se sujeitando a qualquer oportunidade. E diante tantas dificuldades herdadas pelo fim da segunda guerra mundial, o que parece restar são as perspectivas idealizadas por uma solução para a miséria a qual resistem. São as esperanças colhidas quando não se tem ao que mais apegar, a não ser pelos raros instantes de prazer – como a música – e aos amores como consolos. No filme em questão, uma joia é disputada, vislumbrada como alguma divindade, algum tipo de salvação que possa inclusive roubar a condição de pobreza. A história não julga as ações dos personagens, as mostra.

Na linha narrativa está a denúncia declarada, pretendendo mostrar a situação de mulheres que trabalham quase que em regime escravo. Mulheres que, anualmente, no fim da primavera, migram para a região a fim de conseguir algum trabalho enquanto coletoras de arroz. Em troca do serviço, levam um saco com míseros quilos e uma quantia irrelevante em dinheiro. No início do filme, quase que num prólogo reservado, um homem anuncia em um programa de rádio a chegada dessas mulheres ao local, bem como a situação as quais irão se submeter, desde o sol escaldante em suas cabeças até seus corpos que sofrerão com tanto esforço. Em pesquisa, li que este locutor é uma representação dos locutores dos regimes fascistas, que detinham o poder em rádios regionais.

O diretor Giuseppe De Santis, que não teve carreira tão notável quanto a de outros cineastas contemporâneos de sua época, demonstra imenso potencial na direção, aproveitando-se de maquinaria para criar belas imagens através de planos sequenciais onde a câmera dá conta de dar dimensão contextual aos espaços resididos por muitos; ou quando consegue absorver a dimensão dos campos de arroz do Vale do Pó, estando os empregados dividindo metros, fazendo parecer uma espécie de balé de movimentos mecânicos e cíclicos. Com a contribuição da montagem irrequieta, a obra ganhou agilidade em suas cenas bem fundamentadas entre os planos que exigiam dinamismo. Essas são práticas e operacionais.

No caráter de linguagem e recursos, Arroz Amargo se diferencia do, hoje, reconhecido neorrealismo italiano, ainda que preserve uma temática conveniente ao movimento. Se diferencia pela abordagem e meios. Nesse ponto, destaco sua técnica e seu modelo de concepção, já que diante a simplicidade característica dos filmes lançados à época no país, parece demasiado luxuoso, tendo um argumento vigoroso. O filme não se resolve com simplicidade, se delonga em subtramas, justificando assim as decisões de cada personagem. E ainda vaga por outras características de subgêneros, importando traços do noir, movimento até então vigente nos Estados Unidos.

Foi em Arroz Amargo que o diretor Giuseppe De Santis revelou uma autêntica sex symbol italiana. Aos 19 anos, Silvana Mangano fez história ao se apresentar com uma personagem erotizada e polêmica em sua ventura, cuja vivacidade de seus movimentos durante sua vibrante dança despertou os olhares dos personagens e também do público; chamou ainda mais atenção quando aventurou-se na água a fim da colheita, ostentando suas generosas pernas com as meias escuras que alcançavam o meio de suas coxas. O fato ganhou censura, o que complementou sua fama. E não só de sensualidade construiu sua carreira. Mangano trabalhou com célebres cineastas como Pasolini, Visconti, de Sica e Bava, tornando-se uma atriz respeitadíssima na Itália.

Silvana Mangano vive Silvana, uma das incontáveis trabalhadoras que chegam à região em busca de trabalho. No mesmo local, um sinônimo de oportunidade para muitos, surgem policiais frustrados e descrentes com a situação econômica do país, bandidos em fuga após conflitos impetuosos e centenas de mulheres imersas em ilusões. Em certo instante, há duros embates entre trabalhadores registrados contra aqueles que trabalham sem registro, ameaçando com sua mão de obra barata todos que batalharam para chegar até ali. Não deixa de soar como outro cenário de guerra.

Um quarteto romântico ocupa boa parte do tempo da história. Eles se indagam e se conflitam. Há aí uma oposição entre duas mulheres, a loira contra a morena. As razões são muitas. Não obstante, envolve paixões e posse. O arroz amargo do título vem exprimir o investimento caro e necessário o qual todos se dedicam. E seu significado simbólico é pertinente no que diz respeito aos sonhos de conquistas, ameaçados pelas noções de racionalização que inevitavelmente se esbarram. Idealiza-se grandeza enquanto saboreia-se a miséria, de mão sujas.

Frente à perspectiva de realidade e ambição, notamos um trato artístico proporcionado por um dos objetos mais preciosos no filme: o chapéu. Se em certo ponto eles são arremessados quase no intuito de celebração pela conquista de um trabalho, também apontam um pesar numa cena final bastante tocante. Infelizmente, Arroz Amargo não tem a mesma popularidade de outras de sua geração, mas é uma obra absolutamente valorosa, especialmente diante a forma com a qual desenvolve criticamente seu tema, conservando todo o peso de seu argumento. Em 100 anos, provavelmente seguirá funcionando. E, além de tudo, é impreterivelmente categórico no que propõe. Inexorável!

Comentários (5)

Marcelo Leme | terça-feira, 02 de Fevereiro de 2016 - 11:24

Olá, Felipe. Obrigado pela leitura e elogio.

Rodrigo Giulianno | terça-feira, 02 de Fevereiro de 2016 - 13:20

Meu top 20 de todos os tempos..Mangano era uma deusa!

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