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Críticas

Cineplayers

Chabrol em um direto, analítico e transgressor filme sobre o aborto.

8,0

Em 1988, Isabelle Huppert ganhou o prêmio de melhor atriz no Festival de Veneza pelo seu desempenho neste Um Assunto de Mulheres (Une affaire de femmes, 1988), de Claude Chabrol. Era a segunda vez que a atriz vencia o festival sob a direção de Chabrol – a primeira foi com Violette Noizière (1978), sua estreia no cinema. Ela é a mulher que, na França dos anos 40 sob ocupação nazista, fazia abortos clandestinos, em especial em prostitutas emprenhadas por oficiais alemães.

Em 2004, foi a vez de Imelda Staunton vencer o mesmo festival com Vera Drake, de Mike Leigh, uma personagem muito parecida. Estamos na Inglaterra dos anos 50, o país em frangalhos recuperando-se da guerra, e a operária Vera ajuda suas companheiras a se livrar dos filhos indesejados. São 16 anos de diferença, e os filmes não poderiam ser mais diferentes.

Vera Drake tem um casamento estável, é esposa fiel, mãe dedicada e mulher trabalhadeira. Se faz esse tipo de trabalho é porque tem consciência social, tem pena de suas colegas e, imbuída de um espírito empreendedor, desenvolve um método rápido e implacável para dar fim à gravidez. Marie Latour, a francesa, não é nada disso: faz o serviço por dinheiro (o título brasileiro infelizmente perde a ironia do original, pois ‘affaire’ em francês também é ‘negócio’). Com a grana, reforma quartos no seu prédio e os aluga às prostitutas. É uma empresária.

Chabrol é implacável (como sempre foi) na caracterização de sua transgressora. Não a mitifica. Marie Latour não gosta do marido, que voltou inválido da guerra, e despreza o filho. Tem um caso com um dos clientes de uma das prostitutas bem mais novo que ela. Aos protestos do marido, resolve a situação da maneira católica: contrata uma mulher para fazer sexo com o esposo.

Vera Drake, personagem e filme, são austeros, corretos, puritanos. Leigh a transforma praticamente uma mártir do feminismo. O erro dela foi, num dos abortos, ter se enganado na quantidade dos ingredientes utilizados na operação. A mulher morre e Vera é denunciada à polícia. Condenada à morte, terminará enforcada. Marie Latour também vai ver uma de suas pacientes morrer, mas era uma suicida, com seis filhos e que já havia feitos três outros abortos antes. Ela não será denunciada à polícia pela família da moça morta, mas pelo marido traído. Também sera condenada à morte, só que, ao invés de ser enforcada como Vera, é decapitada numa guilhotina.

Comparando-se os dois filmes, o filme de Chabrol é mais transgredor e moderno do que o empoeirado e conservador filme de Leigh, grande diretor e roteirista, mas aqui em registro menor. Chabrol, no entanto, estava afiadíssimo. Numa das cenas, com os amantes adúlteros na cama, o rapaz diz ter achado interessante a quantidade bem maior de pêlos dos órgãos genitais da quarentona, “um casaco de peles”. Na França ocupada, havia uma certa derrisão moral na sociedade, e Marie Latour é parte dela. Chabrol filma esse incômodo momento da história sem concessões. E, no final tão famoso e tão citado, Marie, na cela esperando a morte, reza:

Ave, Maria, cheia de merda
O fruto de seu ventre é podre.


Na entrevista que Isabelle Huppert deu à revista Cahiers du Cinéma por ocasião da morte de Chabrol em outubro de 2010, disse a atriz ser Une affaire de femmes seu filme favorito dentre os oito que fez com o diretor – ou seja, ela prefere Marie a Jeanne, a assassina analfabeta e ressentida de A Cerimônia (La cérémonie, 1995). Segundo ela, da profícua colaboração entre os dois, seria este o filme mais rico – ela, no entanto, cita O Açougueiro (Le boucher, 1970) como o melhor filme de Chabrol.

Na mesma edição, o produtor de Um Assunto de Mulheres, Marin Karmitz, o legendário proprietário da MK 2 Productions (que realiza metade de todos os filmes vencedores dos festivais europeus há décadas, de Krisztof Kieslowski a Abbas Kiarostami), conta que Chabrol tinha horror de ficar negociando os filmes e tendo de fazer concessões nas suas obras, brigando com os produtores. Fez, então, um acordo com a MK 2: recebia um salário (era funcionário regular da MK 2) e não participação nos lucros, desde que tivesse liberdade de criação. “Chabrol era o diretor mais mal pago da França”, resume Karmitz.

O produtor levantava o dinheiro com produtoras alemães e italianas, além de adiantamento das redes de TV da Europa, uma vez que Chabrol não era popular no país natal. Segundo Karmitz, Chabrol foi o único grande diretor da França a não ter sido indicado ao Oscar e nunca ter vencido o César, o correspondente francês. Logo ele, considerado o Hitchcock francês, terminou a carreira, como o mestre inglês, sem ter recebido nenhum prêmio importante. Não que não merecessem, mas que eram ruins de auto-promoção.

Um Assunto de Mulheres traz a tradicional equipe de Chabrol: o fotógrafo Jean Rabier (25 filmes com o diretor francês), Aurore Chabrol, sua esposa, no roteiro, o filho, Mathieu, na música, e mais uma parentada na assistência e cargos técnicos, além de Corinne Jorry nos figurinos (ela foi indicada ao Oscar pelo vestuário de Madame Bovary (idem, 1991), também com a dupla Chabrol/Huppert. Chabrol sempre contou com atores de renome, que trabalharam por salários ínfimos pela experiência de trabalhar com ele. Muitos saíram decepcionados: Chabrol falava muito pouco nos sets e quase não dava instruções aos atores. Se recusava mesmo a ver os cenários ou figurinos antes das filmagens.

Um Assunto de Mulheres fez mais sucesso nos EUA que na França e foi vendido a uma distribuidora americana. Chabrol passou a ser vendido na América do Norte e sua carreira ganharia um novo fôlego, o ultimo, nos anos 90. Virão alguns filmes bons e outros ruins, nesse diretor que filmou muito, talvez demais (88 filmes no total), e cometeu muitos erros (esses, sem dúvida, demasiados). Une affaire de femmes faz parte dos bons filmes: arguto, critico, sem facilitações, brilhante por vezes, áspero. A mise-en-scène é admirável, com os irrepreensível movimentos de câmera, os longos travellings, o foco no rosto expressivo de Isabelle Huppert, além de diálogos inteligentes, rápidos, precisos. Chabrol não adocicou nem com uma personagem tão sugestiva: ele era assim, analítico, direto, cheio de nuances, nunca cedia. Implacável.

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