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Críticas

Cineplayers

A típica trama de espionagem estilizada ao máximo.

7,5
David Leitch criou-se com o fino do cinema violento dos últimos anos. Foi coordenador de dublês em dezenas de produções, entre elas Clube da Luta, V de Vingança, 300, Capitão América: Guerra Civil e O Ultimato Bourne. Não creditado, teve seu primeiro filme dividindo a cadeira de diretor com Chad Stahelski em De Volta ao Jogo, delicioso e irrefreável filme de ação protagonizado por Keanu Reeves que apresentava um universo carismático e elaboradas sequências de ação física a partir de uma premissa ironicamente exagerada e imbecil (um assassino de aluguel parte para destruir uma organização criminosa depois de ter sua casa invadida e matarem seu cachorro). 

Tendo agora o seu debut oficial com Atômica, adaptação da graphic novel The Coldest City escrita em 2012 por Antony Johnston (autor da série de quadrinhos Wasteland e roteirista do jogo de sci-fi/survival horror Dead Space), Leitch mostra que sabe tanto como Stahelski usar das ferramentas do cinema e da linguagem de gênero para criar um filme que compete de igual com o filme de John Wick como um dos grandes destaques dos filmes de ação dos últimos anos.

Abordando o clássico universo de espionagem durante a Guerra Fria, narrando a eterna luta do MI6 britânico contra a KGB russa que nem o fizeram Ian Fleming com James Bond e John Le Carré com Georges Smiley, Johnston e Leitch tem Lorraine Broughton (Charlize Theron), uma agente especializada em combate corpo-a-corpo que, após saber da morte de um companheiro de profissão, vai até o Berlim encontrar o chefe da divisão local David Percival (James McAvoy) para juntos recuperarem uma lista de nomes de agentes duplos para a Coroa britânica antes que um lendário agente duplo russo o faça, tudo ocorrendo durante os últimos dias do Muro de Berlim em 1989.

Aqueles conturbados dias são muito bem aproveitados dentro do universo composto por Leitch, cheio de jogos duplos, traições e reviravoltas a todo momento. Eram dias que máscaras eram usadas e que o maior erro que poderia ser cometido era confiar em alguém. Utilizando fartamente de imagens de arquivo que ilustram e pontuam o filme o tempo todo através de reportagens de televisão, Leitch confronta o realismo de seu pano de fundo com sua concepção visual o tempo todo plástica e elaborada, onde muitos filtros, truques de montagem e escolhas de movimento de câmera são utilizados à exaustão.

A instabilidade política refletindo na ambiguidade estética dá um certo toque neo-noir, ou melhor, neon-noir, pois tão importante quanto luz e sombra na evocação visual da dicotomia também são as cores de seu filme. Em meio à fria Berlim e ostentando figurinos luxuriosos, Lorraine habita tanto espaços de um cinza impessoal como apartamentos, escadarias e ruas quanto a intensa vida noturna de hotéis, bares, boates e tudo relativo à lendária vida noturna do local quando as lâmpadas tingem o ambiente de azul, vermelho e verde de maneira monocromática, onde a agente encontra sua única válvula de escape na figura da amante Delphine Lasalle, agente da Inteligência francesa. 

Se tem um elemento que funciona como um relógio em seu roteiro é a urgência do seu senso de propósito, que mantém a expectativa do espectador em assistir um desenrolar de um evento simples que vai adquirindo camadas mais complicadas. Lá para o final do filme, é verdade que o excesso de reviravoltas uma hora ou outra pode soar excessivo, numa tentativa de continuar surpreendendo e levantando o espectador mesmo quando o momento de catarse já passou. Mas a moralidade confusa sugerida pelo comentário social do pano de fundo e intensificada dramaticamente pelos principais acontecimentos da trama fazem que com que, mesmo assim, jamais tenhamos dúvidas de que, nos dias que em a Cortina de Ferro desabava sobre o próprio peso, tudo poderia acontecer. 

Para dar amparo dramático ao que o roteiro pretende, as performances de seus protagonistas ocupam posições contrastantes. Charlize Theron interpreta Lorraine de maneira cool, fria como gelo, dizendo muito nas pequenas reações, expressando uma gama de sentimentos com sentenças curtas e encarando seus ossos do ofício de maneira quase ritualística, como nas escolhas dos figurinos que veste ou as sequências em que imerge em uma banheira de gelo para tratar do corpo ferido. Já James McAvoy faz um Percival hot, sarcástico e desvairado, discursando monólogos em ritmo de pregação, casaco de peles e cigarro entre os dentes, dando a impressão de ser capaz de qualquer coisa; em resumo, um arquétipo que se não é inédito em sua carreira, mostra um aprimoramento invejável. A turbulenta reação dos dois é pura faísca, sempre dando margem a conflito, suspense e até mesmo humor. Dois indivíduos treinados em sumir e matar, cada um moldado de forma diferente pelo mesmo contexto de guerra não declarada e que, por trás dos panos, lutam na linha de frente. 

E é justamente através da violência que surge a única maneira possível que os dois podem resolver o que os aflige - e para tanto, Atômica é muito, muito violento. Seus personagens, uma vez machucados, carregam cicatrizes, manchas roxas e inchaços pelo resto do filme. Lá pelas tantas, essa atenção à maquiagem é um detalhe tão específico e coerente que passamos genuinamente a nos preocupar com os personagens - por nenhum motivo além de termos acompanhado a história de boa parte daqueles ferimentos. 

O quadro da tela de cinema é o lugar onde libertamos nossos desejos tabu, onde nos relacionamos com indivíduos fora da norma, nos projetando neles; também é um lugar de histórias, de desenvolvimento, onde o que assistimos agora é influenciado pelo que acabamos de assistir; e nenhum momento sintetiza esse conceito de que por alguns momentos nós somos Lorraine quanto o monstruoso plano sequência da batalha nas escadarias de um antigo apartamento da Alemanha Oriental, onde cada capanga é derrotado um a um e jamais com facilidade. 

Com os cortes suspensos por vários minutos e o diretor “cortando com a câmera” (ou seja, a câmera recorta a cena e não a montagem, transformando alturas e tamanhos de quadro através dos travellings), a sensação de suspense é estabelecida em dois tempos; o tempo é encapsulado, dilatado, só importa aquela situação, o dilema se ela vai sobreviver aquele momento, qual novo impacto será o último, quando algum tiro vai acertar, a urgência de recuperar-se dos ataques e reagir de acordo. Lançar mão desse recurso já criou mais de uma cena de ação fantástica - como a cena do elevador de Fervura Máxima, e casa com uma luva com filmes de ação que não tem medo de estudar seus personagens, descobrindo suas ambiguidades e revelando suas dificuldades. Quando nossa principal ferramenta de compreender o espaço passa a ser o tempo dilatado, o tempo de nossa percepção sendo o mesmo de sua protagonista, cria-se uma inevitável aliança com seus personagens - “parceiros de crime” até o próximo corte.

A geração do cinema de ação de Stahelski, Leitch e outros não dá ouvidos às críticas gerais; não teme ser excessiva, ainda que isso atrapalhe suas histórias de quando em quando e tampouco é carola em abordar seus personagens como humanos com desejos e vulnerabilidades emocionais e físicas. Tampouco há a vergonha de carregar consigo elementos típicos do gênero como frases de efeito, a cafonice sentimental e o uso ostensivo de música pop, outro elemento que às vezes pode desviar a atenção do conflito principal, apesar de ter o saldo geral de engrandecer as cenas onde são utilizadas.

Nenhuma crítica deve ser superlativa a ponto de cravar o status de um filme - isso é responsabilidade e privilégio do público - mas Atômica tem todo jeito de cult instantâneo, sem todo aquele jeito de “calculado na medida certa” para ser um “John Wick feminino”. Com um carisma próprio, as escolhas e ambições estéticas de Leitch mostram que não foi escolhido para comandar o vindouro Deadpool 2 à toa, pois a ação dramática tem um belo casamento com o distanciamento irônico. Sempre limítrofe de se perder na maluquice estética pura e simples mas sempre dando um jeito de extrair drama dali, Atômica já é um das surpresas do cinema comercial do ano. 

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