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Aurora

(Sunrise: A Song of Two Humans, 1927)
8,7
Média
289 votos
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Sua nota

Críticas

Cineplayers

Um dos grandes filmes do início do cinema, Aurora cristalizou a despedida do cinema mudo e a chegada de uma nova ordem.

9,0

Um dos mais emblemáticos filmes da era do cinema mudo, Aurora é, mais que um tocante filme com uma história de amor, um filme que discute mudanças sociais. Ainda que seja do início do século passado, debate questões que estão muito presentes no mundo atual, como a do êxodo rural e a sociedade de consumo – afinal, recentemente a população urbana, pela primeira vez na humanidade, ultrapassou em quantidade a população rural. Lançado em 1927 e dirigido pelo alemão F. W. Murnau, esta produção norte-americana é peculiar em diversos aspectos. Primeiro, por ser um filme que contém elementos da estética do cinema expressionista alemão, malgrado seja baseado em uma história de amor melodramática. Foi bastante significativo para a o cinema na época (apesar da baixa bilheteria), sendo considerado também o primeiro filme do Oscar - ainda que não tenha levado o principal prêmio, é a obra mais lembrada da primeira cerimônia da festa mais midiática do cinema.

Entretanto, a grande contribuição de Aurora deve-se a sua narrativa simbólica, a sua mensagem que era um prenúncio das mudanças iminentes na sociedade do séc. XX. O ponto de partida da trama tem início quando um casal do campo tem a vida abalada pela chegada de uma estranha da cidade, que passa a ser amante do homem campestre, formando um triângulo amoroso. Até aí, nada excepcional. Porém, é certo que, entendido como uma obra de arte, um filme jamais será meramente uma narrativa literal, mas sim um discurso simbólico que lida com valores e concepções de mundo. Em sua carga melodramática, nas desventuras de um casal interiorano tendo sua vida tentada pelos prazeres da cidade, reside em Aurora o discurso que visa debater a dualidade entre campo e cidade, o fascínio exercido pelo ambiente urbano e toda a sua velocidade, automatização e suas pirotecnias – o primeira imagem do filme é justamente de uma estação ferroviária, trens e máquinas em movimento. Frente ao ambiente pacato e ingênuo do interior, surge de forma ameaçadora uma nova ordem, voltada ao prazer, ao rompimento com a moral e com valores religiosos.

Esteticamente, Aurora revolucionou o cinema americano, até então predominantemente um cinema de câmera estática e plano fixo. Logo nas sequencias iniciais, a câmera passeia em tomadas sem cortes pelo ambiente rural em pleno luar, uma movimentação de câmera primorosa que fez escola e maravilhou os cineastas da época. Os contrastes de claro e escuro, não somente a grande característica visual do filme, também uma herança do cinema alemão da década de 20, atribuem um significado à dualidade entre campo e cidade, mas também a consciência cindida de um homem diante de tentações.

Nesse sentido, há um tom melancólico de despedida de uma época que marca Aurora. A revolução industrial, a velocidade dos trens, o automatismo das máquinas, o estabelecimento do capitalismo e o consumo crescente são postos no filme como agentes transformadores, elementos que agem no sentido de romper, em um caminho sem volta, valores como honestidade, integridade e fidelidade.  A mulher urbana, bem caracterizada com cabelos negros e curtos, parece interessada em dinheiro sem enxergar obstáculos que não possam ser superados pela quebra da moral – nem que para tanto seja necessário trair e matar.

Nesse ponto, é possível vislumbrar um fenômeno de intertextualidade com o livro de Gênesis, presente na Bíblia. A transgressão, o pecado e a quebra de conduta no livro são propostas pela mulher, que, em Aurora, da mesma forma, parte da personagem da mulher urbana que, sorrateiramente, propõe o assassinato da esposa ao homem do campo. Inegavelmente, há um tom religioso forte em Aurora. Em momento de  arrependimento, ouvem-se os sinos badalando na Igreja (Aurora já contava com efeitos sonoros). Do mesmo modo, sua esposa suplica pela vida fazendo o gesto da oração com suas mãos. Assim como personagens bíblicos, o camponês interiorano parte em uma jornada de provação e redenção, na busca por absolvição dos pecados ao longo do filme.

Não por acaso, o momento onde o homem cai em si, resgata seus valores originais (antes da intervenção do simbolismo da cidade), é justamente dentro da Igreja, ao presenciar um juramento de casamento. Ao ouvir badalar dos sinos ao longo de todo o filme, é possível sentir uma espécie de presença metafísica pontuando todo o longa. O próprio afogamento da esposa, a tormenta na volta, o arrependimento, tudo isso parece surgir como um castigo dos céus, uma força natural punitiva, justamente como em uma provação de personagem bíblico.

Se doze anos antes, D. W. Griffith, pai da linguagem cinematográfica, trazia para o cinema mudo uma produção que abordava a guerra de secessão, como fez em O Nascimento de uma Nação, aqui, num campo muito mais sutil e simbólico, o entrave permanece. Com o final feliz, aparentemente há um triunfo da vida serena, do trabalho honesto, a vitória do amor sobre as tentações. No entanto, é possível que o final feliz tenha sido construído mais no intuito de agradar o massivo público feminino da época, uma realização do gosto burguês pelo equilíbrio e harmonia do lar do que uma constatação premonitória dos rumos dos novos tempos.

Hoje é mais que evidente que o ambiente urbano e seus valores, sua lógica do espetáculo e do conforto triunfaram sobre o ambiente rural, haja visto o êxodo rural, o inchaço da população urbana e a galopante massificação do consumo. Depois de 1927 o cinema passou a ter som, houve a quebra da bolsa, a Segunda Guerra Mundial, as transformações sociais dos anos 60, e muito da ingenuidade, dos valores morais e da relação do homem com a religião mudou. E não há dúvidas de que Aurora era um cinema à frente de seu tempo.

Comentários (3)

Paulo Junior Soares dos Santos | quinta-feira, 16 de Junho de 2016 - 00:23

Aconselho leitura desta profunda análise do professor Olavo de Carvalho sobre o filme Aurora: http://www.olavodecarvalho.org/apostilas/aurora.htm

Paulo Junior Soares dos Santos | sábado, 18 de Junho de 2016 - 00:06

Mostre-me 01 esquerdista capaz de fazer uma análise filosófica como esta do Professor Olavo de Carvalho. Não se trata ali de análise da técnica cinematográfica, mas sim das nuances filosóficas do enredo. Aliás, se julgar-se capaz de compreender o que o professor disse no texto, que você nem deve ter lido, contraponha o ao invés de recomendar ou não sua leitura.

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