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Críticas

Cineplayers

A banalidade são os outros.

8,0
Não é tarefa fácil assistir Auto de Resistência. Vencedor do último festival É Tudo Verdade, a vitória fica muito clara ao final da exasperante sessão, que se estende internamente por caminhos construídos pelos diretores Lula Carvalho e Natasha Neri, em caleidoscópio emocional capaz de nos fazer acessar reflexões que estaríamos fugindo de fazer, porém necessárias hoje. A violência urbana carioca já ultrapassou os noticiários locais e hoje é uma discussão nacional, e isso motivou a princípio esse longa documentário a abordar essa questão de maneira mais direta, e que os diretores tiveram acesso a histórias que passeiam entre o horror absoluto e a impotência irremediável. Ainda que da necessidade do tema, foi criado material cinematográfico.

O título do filme é uma expressão utilizada pela polícia que o próprio filme admite que deveria ter caído em desuso pelos profissionais ouvidos, mas que continua perpetrando os desmandos que vemos diariamente se repetir. Ela deveria ser utilizada somente em situações extremas, onde circunstâncias levassem um agente policial a não ter outra saída a não ser agir contra quem o interpela. Na prática, qualquer ato policial hoje é considerado um auto de resistência pelos mesmos, que não pensam em outra alternativa em primeiro caso que não seja matar, e somente após essa atitude elaborar um motivo para tal. Infelizmente esse é um tema comum hoje, e também infelizmente cada vez menos se restringe ao Rio de Janeiro.

O filme segue mães de vítimas de execuções, sobreviventes (o aspirante a jogador de futebol Chauan e seu caso), e esquadrinha verdadeiras histórias de terror pelo qual a população em sua maioria periférica e negra está submetida a todo momento na cidade. Nada que já não saibamos, mas são a força dos fatos mostrados, das imagens conseguidas, dos relatos dados, dos julgamentos acompanhados, dos reconhecimentos vãos, das expressões de desespero, indignação e cansaço, que permeiam e aproximam o filme do espectador. O diretor Lula também foi o responsável pela fotografia, e ele tenta interferir o menos possível na realidade tão exposta ali, que não precisa de retoque. Seu trabalho consiste em acertar os ângulos e assegurar a luz possível em cada ocasião sem alterar a normalidade, como na complexa cena da reconstituição da chacina de Costa Barros, uma externa noturna que exigiu um esforço além no filme.

A montadora Marília Moraes (de expediente possante em obras como Elena, Mate-me Por Favor e O Palhaço) realiza mais um trabalho de construção milimétrica, trazendo o ritmo para além da duração. Algumas cenas inclusive incomodam pela duração das mesmas (o vídeo com a execução e posterior tentativa de alteração de cenário pelos policiais), outras incomodam pela rapidez; uma das intenções de uma produção como Auto de Resistência é não nos deixar impassíveis, e a montagem do longa aqui foi primordial no processo de imersão do espectador, que é tragado para um panorama ainda mais assustador do que nossa consciência tinha acesso. Ao escolher as personagens certas para ir além no mergulho, a montagem do filme não apenas recorta e emoldura o filme, como também define acertadamente o difícil processo focal de um material aparentemente tão extenso.

Talvez o único problema do filme seja não mapear o caminho total desse rastro de sangue diário (em janeiro desse ano, chegamos à espantosa marca de 5 pessoas assassinadas por dia pela polícia), sua origem e sua abrangência, que sabemos que espalha por praticamente todos os braços da sociedade. Quanto aos méritos, para além dos fílmicos já detalhados, talvez o maior dos inúmeros seja o de transformar estatística em imagem; nós, que vivemos hoje acostumados a tantos dados sobre a incalculável e crescente questão sobre as execuções sumárias perpetradas pelas unidades policiais em todo país nesse exato momento em que esse texto é escrito, e lido. Através de cada um dos relatos, histórias, crimes e legados que cada um deles deixaram e que o filme sensivelmente manterá como registro, Natasha e Lula contribuíram bem mais do que somente ao cinema com seu longa.

Comentários (1)

César Barzine | domingo, 01 de Julho de 2018 - 09:39

Ótima crítica, e adorei o subtítulo; mistura Hannah Arendt com Sartre 😁.

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