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Aves de Rapina: Arlequina e sua Emancipação Fantabulosa

(Birds of Prey: And the Fantabulous Emancipation of One Harley Quinn, 2020)
5,9
Média
106 votos
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Sua nota

Críticas

Cineplayers

Velhas histórias com novas caras

7,0

Ao mesmo tempo em que filmes de heróis são criticados pelo excesso quase industrial em que são produzidos, essa nova era também possibilitou minorias abrirem o leque para um público que pouco se viu representado de forma diferente em tela, fora dos clichês criados pelos homens que dominaram a indústria do entretenimento por tantos anos. Aves de Rapina: Arlequina e sua Emancipação Fantabulosa é um pouco de tudo o que esse novo cenário possibilitou: um filme todo de mulheres (atrizes, diretora, roteirista), que não as sexualiza, que cria excelentes cenas de ação e é regado com um humor politicamente incorreto delicioso que, para ser sincero, surpreendeu depois de trailers mornos e desinteressantes.

Arlequim é um tipo de personagem que figurava a Commedia dell’arte, provinda da antiga comédia italiana que significa palhaço com roupas em formas de losango, mas também uma pessoa que arruma briga por qualquer coisa, que faz os outros rirem espontaneamente, que muda de opinião com frequência... A Arlequina da DC é tudo isso e ainda um capacho do Coringa, que aqui deu um pé na bunda de sua antiga companheira, fazendo com que ela caia na solidão e, por acaso, encontre no anti-heroísmo involuntário uma espécie de redenção. Ou quase isso.

Em sua narrativa, idas e vindas na história explicam origens e complementam informações com um bem-humorado grafismo em neon sobre quem cruza o caminho de Arlequina, que depois que voltou para a pista do solteirismo, viu-se desprotegida de todo o intocável status que o Coringa lhe concedia. Assim é construída a história de sua protagonista que, para fugir de todos os que querem vingança, vai atrás de Cassandra Cain, uma jovem que engoliu um precioso diamante, tornando-a alvo do grande criminoso do filme, Roman Sionis, interpretado por um divertido Ewan McGregor. É interessante o modo burlesco e inseguro como é retratado, uma vez que a diretora reproduz, de forma muito sutil, como as mulheres foram por tantos anos representadas em tela. Ao mesmo tempo, Gregor consegue ser um perigo real para as meninas, já que antes vimos a brutalidade com que trata seus desafetos.

Algo de mais virtuoso que há em Aves de Rapina é sua capacidade de subverter convenções do gênero policial de forma natural e divertida. Renee Montoya, por exemplo, é o que há de mais clichê em termos de detetives cinematográficos: fala de forma caricata - e fazem piada com isso -, é extremamente competente, mas quem leva os créditos por suas ações é o chefe, age por baixo dos panos e até mesmo chega a ter a carreira em risco por isso. Já Cassandra é, literalmente, uma daquelas personas infantis que precisam ser protegidas por terem embarcado sem querer na jornada e, vejam só, engoliu um diamante, símbolo do poder e do dinheiro por décadas - até 007 já teve o seu diamante eterno. Cruzam ainda o caminho de Arlequina a misteriosa Caçadora e a Canário Negro, todas interessantes e com bom tempo em tela, respectivamente a órfã de um crime e a cantora sedutora, formando o grupo que será chamado de Aves de Rapina. Se tirar as idas e vindas agitadas e que deixam o ritmo do filme um pouco estranho, é simplesmente um filme de origem de personagens, mas sem aprofundar seus poderes especiais.

Mas o filme é mesmo todo de Margot Robbie. Atriz do momento, talentosa, fazendo trabalhos tanto para o grande público quanto atuando com diretores consagrados, além de tudo linda, ela foi uma das poucas coisas que se salvou no desastroso Esquadrão Suicida. Seu retorno à Arlequina é menos sexualizado e violento, um filme R-Rated que não se envergonha de colocar uma mulher fazendo o que vimos por tantos anos homens fazer: bater, fazer sangrar, quebrar pernas e ainda transformar isso tudo em entretenimento. Margot está claramente se divertindo e, mesmo com todas as brutalidades, ainda nos faz ter empatia por ela com um simples sorriso, como se fosse uma inocente garota. Mérito dela o filme também não ser um genérico de ação chick flick, expressão americana usada para filmes leves e de romance, “de menininha”, ao convencer tanto a DC quanto a Warner que os combates precisavam ser brutais e sanguinolentos. Ela estava certa. Convincente também nas acrobacias físicas, Margot entrega uma performance dedicada a ponto de mostrar o dedo do meio, falar palavrões e até deixar uma hiena lamber sua boca. É irônico pensar na cena em que ela invade uma delegacia e, ao atirar nos policiais, saem confetes e serpentinas junto a projéteis não letais, quase uma celebração carnavalesca do que aquela mulher é capaz. Ainda acho aquelas tatuagens bregas, parecendo rena, herança do Esquadrão; aliás, uma pena que seu Coringa seja aquele plastificado Jared Leto ao invés do possivelmente premiado Joaquim Phoenix. Pelo menos usaram os HA HA HA cartunizados de forma bem discreta, quase imperceptíveis.

Vale um destaque também para a parte técnica do longa, que decide ir por um caminho mais sóbrio na maior parte de tempo, chegando a mostrar em vários momentos até mesmo uma Gotham clara pelo sol, mas também aproveita a loucura da personagem para dar um visual totalmente oitentista banhado por rosa e azul à noite e roupas dignas daquela década. Algumas imagens são marcantes, a explosão da fábrica é uma das minhas favoritas visualmente e pelo que ela simboliza, o rompimento dos laços com o Coringa. A trilha sonora também reforça a ideia de quebrar paradigmas, seja de forma escancarada ao apresentar Canário Negro performando a clássica It's A Man's Man's Man's World ou de forma simbólica em canções como Joke's On You. Curti. O final é um dos pontos fracos por trazer o recorrente problema de produções que caminham para um duelo final depois de dar dimensão ao conflito trazendo incontáveis capangas genéricos. Preguiça disso.

Aves de Rapina serve para mostrar que, se você der oportunidade para novos pontos de vistas artísticos, a coisa pode dar muito certo. Não quer dizer que filmes de ação feitos por homens aos moldes antigos não precisem existir, John Wick está aí para provar que eles ainda funcionam e ainda podem revitalizar carreiras, mas é animador ver portas que filmes como Pantera Negra e Mulher-Maravilha estão abrindo. A diretora Cathy Yan chega para reforçar o time, Viúva Negra já já está nos cinemas (uns anos atrasada, né?) e em 2020 ainda teremos Patty Jenkins comandando Gal Gadot novamente em Mulher-Maravilha 1984, que vai enfeitar tudo com minha década favorita do cinema. Isso sem falar dos excelentes Adoráveis Mulheres e Retrato de uma Jovem em Chamas, trazendo um rico cinema feminino para todos os gostos. Animador.

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