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Críticas

Cineplayers

O frame escarlate.

8,0

Na abertura de Banho de Sangue (Reazione a Catena, 1971), a câmera de Mario Bava acompanha o voo de uma mosca invisível até o momento em que esta cai morta no meio de um lago. Essa é a primeira “vítima” da câmera do diretor, que neste filme ama mais do que nunca o momento da morte e o trata com tanto carinho e atenção que fica difícil não acompanha-lo, com certo prazer culpado, em sua jornada de matança sem fim que compõe a sinfonia sanguinária de Banho de Sangue, relançada na versão restaurada em DVD no Brasil pela Versátil Home Vídeo nesse mês. A mosca de Bava, ideia tão simples e eficiente, deixa clara a mensagem: muita gente vai morrer fácil, como morre um inseto.

A lógica de Banho de Sangue segue na contramão de qualquer filme de terror desse segmento. Ao invés de um roteiro que trabalha para chegar ao gran finale da revelação da identidade do assassino mascarado, Bava se interessa mais em expandir suas opções através de um sem-número de personagens que vai brotando e morrendo como gado, sendo todos não apenas vítimas indo para o abate, mas também suspeitos dos crimes. Em certo ponto, há mais de um assassino transitando na trama, inúmeras vítimas, diversos suspeitos, e variadas motivações que os levam a matar – um insano corre-corre estilo “matar ou morrer” que acelera uma dinâmica favorável ao principal interesse de Bava nesse meio todo: a imagem.

Se o giallo nasceu a partir de A Garota que Sabia Demais (La Ragazzache Sapeva Troppo, 1963), anterior obra seminal de Bava, foi somente com Banho de Sangue que a influência mor do cinema de terror italiano sobre o americano ganhou nome e forma. Junto com as influências de Psicose (Psycho, 1960) e A Tortura do Medo (Peeping Tom, 1960), Banho de Sangue deu base para o surgimento dos slashers, e pouco menos de uma década após seu surgimento chegava a sensação adolescente chamada Sexta-Feira 13 (Friday the 13th, 1980), praticamente sua releitura. A associação íntima de morte e sexo, um como fator desencadeador do outro, tão presente em Banho de Sangue, estimulou o principal mote dos slashers e seus vilões que surgiam como punidores dos jovens despudorados. Claro que no território conservador do cinema americano o vilão ganhou essa função quase doutrinal de punir os jovens “fornicadores”, de modo que jamais consegue ao fim do filme vencer as mocinhas virgens e livres da mácula do pecado.

No caso de Banho de Sangue e outros splatters o foco é outro. Não há concessões morais nem virtudes que tenham vez nesse universo ensandecido – todos têm culpa no cartório. As mortes vêm como parte de uma macabra sinfonia imagética regida por Bava. A composição dos quadros é artesanal, de modo que os jogos de luzes e a escolha da paleta de cores valem sozinhos como os principais condutores narrativos. O vermelho, em especial, é praticamente uma constante que tinge cada frame, grita em contraste com as demais cores, dado todo o sangue que jorra cena a cena. Ângulos de câmera desfocados, uso de câmera subjetiva na pessoa do assassino, travellings furiosos, e assim tudo caminha para uma grande, suja e subversiva ode ao olhar, ao voyeurismo e ao fetiche sádico que todos possuem em algum grau quando diante da tragédia alheia. Se esse conceito nasceu em Peeping Tom, em Banho de Sangue ele é elevado à ultima potência e sem um pingo da sutileza do filme de Michael Powell.

O interessante é que, ao mesmo tempo em que Banho de Sangue se tornou um precursor de um subgênero dentro do cinema de terror, seu formato é um tanto mais complexo que o daqueles que o procederam. A ideia de trabalhar com múltiplos personagens ambíguos que se revezam nos papéis de suspeitos e vítimas, fora a trama rocambolesca de inúmeras reviravoltas e surpresas, foge do pressuposto de que filmes assim são formulaicos ou pouco criativos. Ora, se já não bastasse a maravilhosa cadência com que Bava dispõe suas imagens, aqui ele ainda brinca muito com o famoso plot “quem matou?” ao estilo dos mais vagabundos romances policiais. No fim das contas, esse cuidado com a história é uma exceção entre a maioria dos gialli, que em geral procuram minimizar o máximo possível a trama em função de engrandecer a imagem acima de tudo, reconhecendo ela como o recurso mais importante, impactante e vital no cinema.

No entanto, esse cuidado não faz de Banho de Sangue um giallo sofisticado; muito pelo contrário, tudo é muito grotesco e irônico e o humor negro rola solto. O título original, “Reação em Cadeia”, já nos oferece uma ideia do frenesi que dinamita toda a narrativa, numa sucessão de mortes infindáveis e personagens totalmente amorais. Se até hoje possui esse impacto de choque em um público muito mais calejado, em sua época então foi uma literal catástrofe, sendo editado, remontado e relançado diversas vezes mundo afora, sob diversos novos títulos na tentativa de emplacar. Nos Estados Unidos, por exemplo, ganhou os títulos de Twitch of the Dead Nerve e The Last House on the Left 2, este último uma malandragem sacana de tentar vendê-lo como uma continuação do filme Aniversário Macabro (The Last House on the Left, 1972), sucesso de Wes Craven.

A fórmula de Banho de Sangue foi plagiada e reusada centenas de vezes mundo afora. Inclusive no Brasil temos o exemplar Shock: Diversão Diabólica (idem, 1984), que suga muito do filme de Bava. No caso do cinema americano a influência desencadeou a onda de slashers, que vieram em massa a partir de Sexta-Feira 13, mas que também foram influenciados pelas regras do gênero ditadas em Noite do Terror (Black Christmas, 1974), de Bob Clark, e Halloween - A Noite do Terror (Halloween, 1978), de John Carpenter. De certa forma, o peso dos filmes de Clark e Carpenter redirecionou essa leva de slashers a uma direção diferente daquela seguida por Bava em Banho de Sangue, permanecendo apenas esse fluxo do assassino mascarado/arma branca/sexo/morte e a irreverência de não se levar tão a sério. Para o cinema em geral, continua como uma obra de arte ao mesmo tempo genial e tosca, brilhante dentro de toda sua concepção visual fantástica e sua identidade maldita, e talvez um dos (senão o) mais seminais trabalhos de Mario Bava.

Comentários (6)

Augusto Barbosa | terça-feira, 25 de Agosto de 2015 - 21:23

tudo caminha para uma grande, suja e subversiva ode ao olhar, ao voyeurismo e ao fetiche sádico que todos possuem em algum grau quando diante da tragédia alheia.

Resume o próprio giallo e o cinema fantástico italiano aí, dos quais, claro, Banho é obra propulsora. Dá-lhe, Heitor, ótimo texto!

Heitor Romero | terça-feira, 25 de Agosto de 2015 - 22:12

Obrigado, Guto *_* Acho que Banho de sangue foi meu primeiro Bava e meu primeiro giallo, foi muito bom rever e escrever sobre ele

Victor Ramos | terça-feira, 25 de Agosto de 2015 - 22:30

Esse tinha passado em branco pelo especial, rs Boa, Heitor!

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