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Críticas

Cineplayers

As sombras de Gotham City.

8,0

De tempos em tempos, é comum que uma indústria que vive do senso de grandeza e poder como Hollywood eleve a aposta e surpreenda com um blockbuster que seja mais ousado e influente que os anteriores, estabelecendo um novo recorde a ser batido. Se tudo se intensificou a partir do conceito de cinema arrasa-quarteirão trazido por Steven Spielberg em Tubarão (Jaws, 1975) e hoje são os filmes de super-heróis que se estapeiam ano a ano para destronar Avatar (idem, 2009) da liderança, nesse meio tempo alguns títulos tiveram seu lugar ao sol na contribuição para a escalada de ambição hollywoodiana – entre eles Batman (idem, 1989), de Tim Burton.

O que difere Batman dos demais arrasa-quarteirões que elevaram a aposta e estabeleceram um novo parâmetro a ser batido pela indústria é a forma como um diretor então iniciante teve liberdade o suficiente para imprimir um cinema autoral em cima de um projeto encomendado de estúdio, sobre um personagem já famigerado no conceito do público. Batman, o personagem original de Bob Kane, teve sua origem nos quadrinhos e já havia migrado para a TV, de modo que no fim dos anos 1980 era um ícone de apelo muito popular. Trazê-lo para os cinemas envolvia a ambição dos estúdios em inaugurar uma possível franquia com o mesmo alcance de Superman - O Filme (Superman, 1978), e quem diria que Tim Burton acabaria como a aposta para concretizar o sonho.

Um outsider nato, Burton fez o que ninguém ousaria fazer e trouxe ao universo de Batman toda uma onda de influências do cinema antigo, desde o expressionismo alemão até os filmes de gânsters dos anos 1930, passando nesse meio pelo filme noir americano e pelos filmes de horror B. Reimaginou Gotham City como um hospício de luzes e sombras habitado pelos tipos mais cínicos, amorais, solitários e traumatizados, corrompida por um corpo político sujo. O currículo de Burton até então contava com apenas um longa de destaque, realizado no ano anterior, Os Fantasmas se Divertem (Beetlejuice, 1988), no qual ele demostrou culhões ao colocar estrelas como Alec Baldwin, Michael Keaton e Geena Davis se descontruindo em papéis atípicos em uma comédia maluca e lotada de humor negro. Em Batman ele faria o mesmo, e em maior escala, com um elenco encabeçado por ninguém menos que Jack Nicholson.

Não apenas esteticamente, Burton emprestou do noir e do expressionismo o conceito de espelhar em seus cenários e imagens o interior fragmentado de seus personagens. A solidão e isolamento de Bruce Wayne se refletem em cenários mergulhados em escuridão, névoas, neon, sombras e chuva. Os conflitos e motivações que corroem e movem Batman, já conhecidos do grande público, não precisavam de nada mais que esses signos visuais para ganharem vida e representação. Em um ambiente tão hostil, é fácil comprar o surgimento de outros personagens ainda mais perturbados, como Coringa, uma das composições mais certeiras na história do cinema de super-heróis. Jack Nicholson, um ator por natureza indomável e dado a personagens insanos, deita e rola na anarquia típica do cinema de Burton dessa época, com o diretor permitindo e ao mesmo tempo sabendo domar e potencializar as peripécias que ele oferece na pele do vilão. É o perfeito contraponto de Michael Keaton e seu Bruce Wayne também assombrado pela violência de Gotham, e essa origem em comum faz do embate entre herói e vilão um dos pontos de maior alcance psicanalítico do roteiro – afinal, Batman não se encaixa jamais no perfil de um protagonista do bem.

Batman viria a ganhar sequências, reboots e novas franquias ao longo dos anos, entre elas a continuação direta dirigida pelo próprio Burton e provavelmente o melhor filme que o homem-morcego já ganhou até agora. Lançou semente para o que hoje se transformou no principal braço da indústria hollywoodiana, com a Marvel e a DC assumindo uma espécie de monopólio sobre o cinema de entretenimento mundial. Se em sua época foi um divisor de águas, hoje é um dos precursores do ramo mais rico do cinema americano, mas ao mesmo tempo nem é de longe o filme mais lembrado de seu realizador. O Burton dos anos 1980-1990 foi um dos maiores estetas e mais inventivos contadores de história de Hollywood, sabendo manter sua identidade e postura em um meio no qual não era bem vindo e pouco se encaixava, mas ao mesmo tempo trazendo de volta a influência de gênios como Mario Bava, Vincent Price e Roger Corman. É incrível que ele tenha aplicado toda essa bagagem sobre um personagem como Batman, já tão desgastado, mas que ganhou todo um novo conceito a partir dessa visão – conceito este que permaneceu vivo mesmo após cair nas mãos de diretores diversos, como Joel Schumacher, Christopher Nolan e Zack Snyder. Se o próprio Burton acabou cedendo e se vendendo ao longo dos anos, hoje fazendo trabalhos comportados e sem personalidade, que bom que nos deixou de presente tantos filmes ricos e essa ideia de um super-herói do avesso, tão determinado a fazer justiça e ao mesmo tempo tão vítima e tão perigoso e desequilibrado quanto o mal que combate.

Comentários (1)

André Ribeiro | sábado, 21 de Dezembro de 2019 - 09:23

Bela crítica. Este filme é simplesmente a razão de eu gostar tanto de cinema.

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