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Críticas

Cineplayers

O grande Woody Allen está de volta.

8,5

Incrível o bem que uma grande atriz pode fazer a um filme do Woody Allen – uma verdadeira atriz, não Scarlet Johansson. Da mesma forma que as Dianes Keaton e Wiest, e de certa forma também Mia Farrow, foram fundamentais para o sucesso dos melhores filmes de Allen ao longo dos anos, Cate Blanchett é o mais recente e melhor filme do diretor em 20 anos, Blue Jasmine (idem, 2013), sua mais intensa e fluida obra desde pelo menos O Misterioso Assassinato em Manhattan (Manhattan Murder Mystery, 1993), com Diane Keaton, e Tiros na Broadway (Bullets over Broadway, 1994), com Diane Wiest.

Blue Jasmine talvez seja um de seus filmes mais cruéis: ao retratar impiedosamente uma socialite de Nova York quebrada após a morte do marido, Allen escolheu um bairro de classe média baixa de San Francisco (portanto, não ambientou o filme apenas em cartões postais deslumbrantes de Manhattan, só nos flashbacks), cenários claustrofóficos, barulheira infernal e um humor corrosivo que havia desaparecido das obras mais aguadas das duas últimas décadas. Mas a grande diferença é como Cate Blanchett lida com as paranóias típicas dos personagens de Allen: dá intensidade, injeta desalento, deixa o público atônito. Nunca um neurótico woodyalleniano, nem mesmo o próprio diretor e roteirista como ator, sofreu tanto com as próprias fobias. Allen compreendeu isso e, ao explorar as possibilidades que Blanchett poderia proporcionar, foi mais longe e de maneira inédita em sua obra.

Blanchet fica em cena praticamente 90% do filme. Fala sozinha, bebe o tempo todo e se entope de Zanax, um tranquilizante usado para tratar distúrbios de ansiedade. Vestida de Channel, sapatos Hermès e bolsas Fendi, é uma versão contemporânea da Blanche Dubois, personagem que o dramaturgo americano Tennessee Williams criou na peça Um Bonde Chamado Desejo (A Streetcar Named Desire, 1951) – chegou ao cinema, com nome idêntico, na versão de Elia Kazan, com Vivian Leigh no papel principal. Blanchett acaba de interpretar a personagem nos palcos. Woody Allen disse que não viu a montagem, mas pelo menos o título do novo filme é uma referência à peça: Blanche Dubois diz na peça que Stanley, o rústico por quem se apaixona, não era do tipo de “sentir perfume de jasmim”.

Blue Jasmine é também um comentário de Allen para a crise financeira mundial, em especial o escândalo Madoff, quando o então presidente da Nasdaq, a bolsa de valores de empresas .com, Bernard Madoff, foi preso em 2008 depois que os próprios filhos avisaram o FBI das atividades criminais do pai, uma fraude de US$ 65 bilhões. A alta sociedade mostrada por Woody Allen é, além de cínica e esnobe, corrupta e criminosa. A classe média é mesquinha, cafona, ‘loser’. Sem charmes dessa vez: o diretor saiu dos huis clos de Manhattan (ou o equivalente na Europa) para algo mais ambicioso e universal.

Mas o Woody Allen misantropo, hipocondríaco e esquizofrênico de sempre está lá. O curioso é que, ao soltar as longuíssimas, intermináveis frases dos diálogos do roteiro de Allen, Cate Blanchett não repete os tiques e estereótipos do diretor na personagem: elas os molda numa constante de desilusão, desespero e desalento. Ela chora quando um pretendente finalmente liga para chamá-la para sair: isso nunca foi motivo de crise de choro num filme de Woody Allen. Mentirosa crônica, fantasista e incapaz de reconhecer a realidade, a anti-heroína é de tal forma humana e real que seduz pelos seus defeitos, como os demais personagens cativantes de Woody Allen, mas sem os apartamentos chiques de Nova York, nem a deslumbrante paisagem, nem a larga cultura ou a condescendência com os menos afortunados, em geral menos inteligentes, que Allen justifica por motivos de força sexual. Jasmine é uma “menos afortunada” intelectualmente, mas tão sedutora quanto – e não está nem um pouco interessada em ter relações com ninguém fora do que ela considera seu ‘círculo’. Eis uma das novidades do filme em relação ao restante da obra do diretor.

As piadas voltaram à boa forma, ácidas e melancólicas. Mais elaboradas, várias não são nem mesmo verbais – é apenas o diretor com a câmera e sua atriz.  As pausas dramáticas de Blanchett, com seus profundos olhos azuis e em geral uma cara abobalhada, pois a personagem foi pega de surpresa em mais uma gag do diretor, diluem o ritmo da comédia e intensificam o drama. Mesmo em situações mais ou menos absurdas, bem típicas de Woody Allen, as polidas e longas respostas de Jasmine soam arrogantes e antipáticas, de alguém atacando porque na defensiva, de maneira que o todo foge de ser “mais uma cena engraçadinha” que foram correntes nos demais filmes recentes do diretor. Há tensão. A personagem não está apenas respondendo de forma graciosamente inteligente a uma provocação. Ela está ocultando (mal) suas fraquezas, mesmo que o tom seja de farsa.

Flashbacks permeiam a trama, explicando o passado, servindo de contraponto e impregnando as personagens de experiências. Rara tanta força narrativa em Woody Allen, só mesmo em suas obras de maior fôlego. Em suma, um filme menos abstrato que se espera do diretor no que seria sua fase final. Se antes ações e situações serviam apenas para ilustrar as ideias do diretor, em Blue Jasmine temos um presente forte o suficiente para interferir em tudo, mesmo nas crenças das personagens. É menos hermético e nem por isso mais superficial. Ao contrário, dá a Allen uma densidade que lhe faltava ultimamente.

Com a câmera mais ágil, mesmo em espaços exíguos, Woody Allen conseguiu outro efeito: quando está parada, foca a desamparo interior de Jasmine. Em vez de ratificar as neuroses com as indefectíveis torrentes de palavras e citações, o diretor explora emoções que são desconhecidas pela personagem e ela não saberá como lidar como elas. É como se o cineasta tivesse saído de seu contemplativo mundo de intelectual para tentar entender a realidade que passa os EUA (e o mundo hoje) durante a crise econômica. Ele mesmo, diretor, que não consegue financiamento para seus filmes em Hollywood e é ignorado pela maior parte do público de seu próprio país. Woody Allen é Jasmine French.

Comentários (31)

Gian Luca | quinta-feira, 09 de Janeiro de 2014 - 02:48

Trazer Uma Rua Chamada Pecado para o mundo contemporâneo não é tarefa fácil (mas é uma ideia genial!), e Woody Allen o faz com maestria. O filme é, na maior parte, dominado por Cate Blanchett. Porém, a direção mestre de Allen está toda lá, levando suas típicas neuroses e ironias ao extremo e também conduzindo com mão firme todos os personagens, que navegam com muita fluidez neste mundo insano.

Cecília Alves | sexta-feira, 10 de Janeiro de 2014 - 06:00

Tomara que a \"tragédia\" de 1999 não retorno ao Oscar esse ano. Gwyneth Paltrow nunca justificou a injustificável premiação. Esse ano \"Sandrinha\", que é super carismática, tá sambamdo outra vez. Parece até filme de terror dos anos 80... Será? Medo!

Raphael da Silveira Leite Miguel | quinta-feira, 13 de Março de 2014 - 00:25

Novamente lendo a crítica, agora reparei a tirada a Scarlett Johansson, pois é, a crítica está muito boa, mas isso aí foi uma escorregada e tanto ein...

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