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Críticas

Cineplayers

O cotidiano "animalesco" do sertão.

8,0
Em um dos documentários de sua filmografia, Doméstica, Gabriel Mascaro descortinava o cotidiano das empregadas de casas de família através do prisma dos filhos e filhas dos patrões, desconstruindo uma realidade que desmascarava a relação muitas vezes íntima e pessoal entre duas classes sociais, entre empregador e empregado, um recorte que ou muitos conhecem, ou muitos ignoram. Em Boi Neon, seu segundo longa de ficção, Mascaro retorna a essa proposta de recortar um momento de um contexto renegado, ambientando seu filme no longínquo e árido sertão, onde alguns rostos nos são apresentados, apoiados em caracterizações que vão sendo desconstruídas conforme Mascaro vai levando seu olhar adiante.

Esse olhar recai sobre Iremar (Juliano Cazarré), cujo trabalho puxado consiste em preparar os bois para os espetáculos de vaquejada, mas que sonha mesmo é em ser estilista no Polo de Confecções do Agreste, passando seus momentos de folga desenhando vestidos em cima de revistas com mulheres nuas e usando o corpo de Galega (Maeve Jinkings), com a qual viaja pelas vaquejadas ao lado da filha Cacá (Alyne Santana), para confeccionar um biquíni vestido em apresentações onde a mesma traja-o usando uma cabeça de cavalo (!).

Nota-se que Boi Neon não faz questão de partir de um ponto específico, e aí está o primeiro elemento que certamente causará o afastamento de uma boa parte do público. Mas Mascaro não tem como objetivo clarear o que há de significativo ou não em seu filme. Quem quiser procurar um discurso no filme deverá atentar não apenas no já dito recorte daquele cotidiano seco, mas na maneira como o diretor vai despindo seus personagens daquela carcaça que os caracteriza, transformando-os em seres humanos cuja convivência se une e até mesmo se confunde com os animais a sua volta, num óbvio embate entre os interesses do homem e da natureza. 

Abraçando essa proposta com força, Mascaro valoriza as locações amplas e rústicas pelas quais seus personagens caminham, elaborando planos abertos que nos permitem olhar para seus personagens enraizados naquele cenário, fundidos num sertão de onde é extraído seus cotidianos, relações e ganha-pão. Alguns longos planos em que Mascaro evita os cortes e deixa sua câmera estática servem justamente para que o espectador compartilhe da sensação de ter aquela vastidão naturalmente iluminada como casa, como ponto de convivência. Estes mesmos planos sem cortes causaram polêmicas em algumas exibições (apesar do filme ter sido elogiado no Festival de Veneza), quando Mascaro despe literalmente seus personagens na tela, mostrando até mesmo o órgão genital do personagem de Cazarré durante um ato sexual.

Nesse ponto, Mascaro mostra que não deseja apenas se manter no recorte, mas criar uma quebra de estereótipos e concepções sobre o que é a convivência num cenário marcado e conhecido pela predominância de funções definidas pelo ser homem ou mulher. Iremar, por exemplo, não é homossexual, mesmo com sua visão quase romântica sobre o trabalho de estilista, e enquanto esse homem trabalha com seus manequins jogados pela lama, a mulher dirige o caminhão para cada uma das vaquejadas e até mesmo assume a função de mecânica quando Iremar se ocupa com suas criações. São personagens comuns de gostos incomuns, humanizados por seus anseios, funções e desejos dentro de uma realidade que já pré-define muita coisa.

Méritos também para a competente direção de atores de Mascaro, um êxito que precisa ser ressaltado quando analisada a filmografia do diretor, habituado a filmagens não-ficcionais. Em Boi Neon, o elenco transparece naturalidade na composição de seus personagens, especialmente na adoção do sotaque típico do sertão pernambucano, com vários diálogos carregados de um humor bastante peculiar, onde são ressaltadas expressões e gírias daquele meio rural. Neste ponto, Mascaro também é feliz ao equilibrar o discurso de suas imagens e o significado das palavras, enriquecendo a experiência até mesmo por seu viés geográfico.

Boi Neon em nenhum momento busca um grande significado para si, algo que talvez as mentes mais ambiciosas procurem no filme. Mascaro não se apoia num cinema fechado na complexidade, mas abraça uma visão mais universal, ampla e livre desse cenário que, e isso também é ressaltado pelo filme, sofre com o desenvolvimento socioeconômico do país, e com isso acaba sendo renegado. É na extrema simplicidade e no seu olhar sensível sobre essas ações contínuas que Boi Neon encontra seu significado. É o nosso cinema quebrando paradigmas, um tipo de cinema que definitivamente merece receber atenção.

Comentários (4)

Luiz F. Vila Nova | sábado, 07 de Julho de 2018 - 13:35

Vi hoje esta obra e confesso que curti bastante. Ótima crítica.

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