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Bons Companheiros, Os

(Goodfellas, 1990)
8,8
Média
1159 votos
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Sua nota

Críticas

Cineplayers

O filme que levou o gênero gângster ao limite máximo.

10,0

Em manuais de roteiro de cinema, bem como em oficinas e palestras sobre o tema, é bastante comum deparar-se com a idéia de que os dez minutos iniciais de um longa-metragem são de extrema importância para que o filme apresente sua idéia, seu mote, sua razão para existir e ser visto, e por conseqüência fisgar o espectador. E ainda reza a lenda que é justamente no início do roteiro que está cravado o seu destino, se aquela história ganhará vida ou não. Dada a grande competitividade da indústria cinematográfica, um roteiro com um começo desinteressante provavelmente nem mesmo chegará a ser lido por um produtor.

Desse modo, geralmente um bom filme tem um início marcante, e são inumeráveis os grandes exemplos. Freqüentemente a longa filmagem sem cortes, o enorme plano-sequência presente nos minutos iniciais de A Marca da Maldade, de Orson Welles, é lembrado como uma das formas mais geniais já criadas para apresentar uma história no cinema. Entretanto, talvez nenhum filme tenha conseguido imprimir um começo tão marcante, tão persuasivo e que sintetizasse todo o filme (e todo o gênero de cinema gângster) de maneira tão simples quanto genial como em Os Bons Companheiros. “As far back as I can remember, I've always wanted to be a gangster” [Até onde consigo me lembrar, sempre quis ser um gângster], diz em narração-off o protagonista interpretado por Ray Liotta, dando partida para o flashback que contará toda a saga desde sua infância como aprendiz de criminoso até seus percalços na vida mafiosa. De qualquer forma, há uma visão determinista que paira sobre os filmes do gênero, e não seria diferente neste. Desde os primeiros filmes, os gângsters eram vistos como vítimas de seu ambiente, crianças crescendo em ruas mal freqüentadas. E, a partir da imaturidade dos personagens, da irresponsabilidade fascinante porém perturbadora, esse universo todo chega a ser atraente, e em certos momentos até mesmo engraçado para quem assiste.

Adaptação de Martin Scorsese do livro “Wiseguy”, de Nicholas Pileggi, o “Os Bons Companheiros” conta a história de Henry Hill (Liotta) e seus parceiros Jimmy Conway (Robert De Niro) e Tommy De Vitto (Joe Pesci) na ascensão ao mundo do crime. Além ser um retrato das suas engrenagens, o filme é um mergulho na mente do gângster, suas motivações, anseios e inquietações diante de um universo onde aderir à máfia lhe parece ser a melhor alternativa na tênue linha que pode o separar entre ser “alguém” na vida ou ser um “nobody”, um Zé Ninguém. É, sobretudo, um retrato do sonho americano, em mais uma de suas formas. E é este o gênero que permitiu historicamente os cineastas deterem-se na fascinação americana pela violência e pela ilegalidade. “Pra mim, ser um gângster era melhor do que ser Presidente dos Estados Unidos”, proclama novamente em narração-off o personagem em mais um de seus aforismos particulares. Além do trio de companheiros que dão nome ao filme e que figuram no cartaz, há ainda a importantíssima participação feminina de Lorraine Braco no papel de Karen Hill, esposa judia do protagonista, que da mesma forma, apesar de toda a boa educação familiar, sente-se involuntariamente, ou melhor, sexualmente atraída pelo universo dos gângsters.

Desde seus primeiros trabalhos nos fins dos anos 60, Martin Scorsese já demonstrava grande talento para levar às telas tramas envolvendo este universo mafioso dos bairros de imigrantes europeus. Foi assim em Quem Bate à Minha Porta?, seu primeiro longa, foi assim um tempo após em Caminhos Perigosos. As particularidades do modo como retrata a temática formam praticamente um subgênero, pois ao contrário de outros filmes de gângster (em especial O Poderoso Chefão), aqui é o “baixo clero” que importa, os escroques, os picaretas que buscam ascensão, as mortes banais, a leviandade e a degradação do companheirismo a favor do crime. Em Os Bons Companheiros, não há dúvida, ele elevou ao máximo o gênero que criou dentro do gênero do cinema gângster.

A habilidade do diretor em retratar esse mundo do poder paralelo deve-se fundamentalmente por dois motivos. O primeiro, pelo fato de que o próprio cresceu em um bairro italiano em Nova York repleto de bandidos do colarinho branco, convivendo com mafiosos e candidatos a gângster, um lugar onde a máfia dava o tom do ambiente. O outro, é pela grande paixão que o diretor sente pelo gênero cinematográfico, que fica muito evidente em seu documentário “Uma Viagem Pessoal Através do Cinema Americano”. Nesta produção, em determinado momento são abordados os filmes dessa temática, e é visível o entusiasmo em que Scorsese trata o tema. Em certa altura ele afirma: “Eu gosto de pensar que ‘Os Bons Companheiros’ nasceu da tradição de filmes tão extraordinários quanto ‘Scarface (1932)’, de Howard Haws e ‘The Roaring Twenties (1939)’, de Raoul Walsh”, grandes expoentes da tradição do gênero na Era de Ouro do cinema americano. Neste último, Scorsese demonstra admiração maior ainda, pelo fato de que neste filme o gângster torna-se uma figura trágica, por meio da ousadia do diretor em utilizar  imagens semi-religiosas para compor a obra. Em filmes assim não há espaço para maniqueísmo.

Os Bons Companheiros é provavelmente um dos filmes com direção mais virtuosa e inventiva já realizados em Hollywood. O modo como enquadra as roupas refinadas, os sapatos lustrados e os carros dos chefões do bairro dão uma noção do quão deslumbrante pode ser a máfia, e porque está tão presente no imaginário coletivo. Já é lendário o enorme plano-sequência, a filmagem sem corte algum que dura mais de três minutos e que exibe Henry Hill e Karen entrando no restaurante Copacabana pelos fundos, sem precisarem aguardar na fila. O crítico norte-americano Roger Ebert define a tomada como uma simbologia para exibir de que forma o mundo se abre, se curva diante da imponência de um gângster, no sentido de que, quando no auge, não há barreiras para ele. Outro plano extremamente inventivo é o qual os atores Liotta e De Niro encontram-se em uma lanchonete. Lá, acontece algo de muito interessante e indescritível que intrigou público e cineastas: “a imagem move-se, mas permanece lá, algo como uma vertigem”. Este recurso, como bem explica o diretor de fotografia do filme no documentário “Visions of Light: The Art of Cinematography”, consiste em afastar a câmera, ao passo que, sem perder o foco, vai aumentando-se o zoom, gerando aquela sensação perturbadora. O recurso ganhou fama aí, e já foi tão copiado que hoje está presente até em programas de TV.

Outro recurso que ficou famoso neste filme e foi muito utilizado em outros filmes é o de, em plena ação, no ápice da tensão e do movimento de câmera, congelar a imagem, ao passo que o protagonista (ou quem estiver vivenciando a cena) faz a sua narração em off sobre a imagem congelada. A influência desse recurso é vasta, está muito presente inclusive no cinema nacional, em especial no Tropa de Elite. Quem viu o longa de José Padilha facilmente irá se lembrar de momentos como em que o furgão em alta velocidade, ou o tiro disparado no morro por Neto logo no início, onde a imagem é congelada em plena ação dando lugar ao Capitão Nascimento e sua narração.  Ainda com relação a este filme, assim como em Cidade de Deus, é notável a influência da linguagem do filme de Scorsese. Não somente pelo tom determinista, pela temática da violência urbana, pela ascensão e queda de criminosos, mas sobretudo pela linguagem cinematográfica.  A narração em off pontuando e conduzindo o filme, tão característica em Os Bons Companheiros, está nesses filmes nacionais quase como fenômeno intertextual. Não por acaso, Fernando Meirelles diz em seu blog que, tanto para ele quanto para Bráulio Mantovani (roteirista dos dois filmes), o roteiro de Os Bons Companheiros é simplesmente a “Bíblia”. Curioso o fato de que, tanto Tropa de Elite quanto o filme de Scorsese acabam com o mesmo plano: a arma apontada para a minha, para a sua cara, apontada para o espectador.

Ainda no âmbito da linguagem, não há como deixar de lado o sábio uso da trilha sonora. O diretor marca a passagem do tempo fazendo uso de músicas já existentes, hits de rádio, sem recorrer à trilha incidental composta. O filme por si só já tem um ritmo de montagem frenético, e, somando-se a isso, esse desenrolar das três décadas no mundo do crime ganha ares de videoclipe. Desse modo, ao vir desde os anos 50 até os fins de 70, há todo um apanhado da recente história da musica pop e rock mundial. O filme começa com standards de jazz, músicas do cancioneiro americano, e segue com sucessos pop doo-wop dos anos 50. Grupos de vocais femininos dos anos 60? Estão lá. Rollings Stones e Beatles? Estão lá, estes últimos representados pela belíssima “What is Life”, de George Harrison. Blues? Está lá o maior bluesman de todos, Muddy Watters.  Punk?  Até o baixista Sid Vicious da banda Sex Pistols marca presença nesta trilha que, pessoalmente, considero uma das melhores de qualquer filme já feito.

Assim, o filme parece ser um resumo da cultura pop musical, e talvez, pensando além, é uma sinterização de um dos gêneros mais importantes para a cultura cinematográfica. O plano final faz alusão ao famoso plano do bandido no filme americano O Grande Roubo do Trem, de 1903, onde pela primeira vez no cinema uma arma foi apontada para a câmera, e por sua vez ameaçadoramente para o público. A obra de Edwin Porter é o maior marco do cinema inicial americano, e ao estar diante do final em Os Bons Companheiros, depois de mais de duas horas de imagens devassadoras, chega-se à conclusão: até onde aquela brincadeira chamada cinema pôde chegar! As listas de melhores filmes não negam: estamos diante de um das obras máximas da invenção dos irmãos Lumière.

Comentários (9)

Raphael da Silveira Leite Miguel | domingo, 19 de Maio de 2013 - 15:41

Muito boa crítica, assim como o filme, coladinho com Touro Indomável como melhor de Scorcese. E não discordo daqueles que acham melhor do que O Poderoso Chefão, realmente é bem parelho.

Também fiquei espantado com a nota e lupa do Demetrius, vai entender né.

Cristian Oliveira Bruno | sábado, 23 de Novembro de 2013 - 14:12

Obra-prima!! Filme perfeito. Irrepreensível!! De Niro, Liotta e Pesci em sua melhor forma comandados por Scorcese não podia ser menos que 10!!

Guilherme Santos | terça-feira, 01 de Julho de 2014 - 13:27

a narração interfere muitas vezes no filme, tirando impacto e explicando demais certas coisas, não gostei muito do roteiro do filme, arrastado e as vezes previsível, a direção de Scorsese que sustenta boa parte do longa criando ótimas cenas e ainda conta com um ótimo elenco, mas não foi o filme que eu esperava. 7,5
PS. Taxi drive sempre vai ser o melhor de Scorsese

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