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Críticas

Cineplayers

Filme de estreia de Jeferson De foge dos clichês e lança um olhar diferente sobre a periferia paulista.

8,0

Um olhar displicente sobre o filme de estreia de Jeferson De, Bróder, poderia colocá-lo simplesmente como mais do mesmo no cinema de cunho social brasileiro contemporâneo – resumindo, mais um filme sobre favela. No entanto, alguns elementos ao longo da história a desviam dos seus próprios clichês e abrem outras janelas possíveis de relação e de interpretação do filme.

Alguns desses elementos são completamente extra-fílmicos, misturando a trajetória da obra com a do diretor. Para começar, pode-se levar em consideração o tempo que o filme demorou para ser feito, cerca de sete anos: em 2003 o filme foi selecionado para o Laboratório do Festival de Sundance, foi filmado em 2007, lançado em festivais em 2010 e, finalmente, entrou em cartaz em 2011. Não é de se estranhar, logo, que a obra tenha sua aura de projeto pessoal. Ao mesmo tempo, é percepitível a diferença de estilo entre os curtas-metragens do diretor e esse seu primeiro longa.

Jeferson De é um dos poucos diretores negros atuantes no cinema brasileiro, pelo menos, no cinema industrial das grandes distribuidoras e orçamentos. O realizador construiu uma carreira de curtas-metragens com temáticas polêmicas; sendo, por exemplo, o criador do Dogma Feijoada – manifesto que defendia a representação de personagens negros não estereotipados (o nome era obviamente uma brincadeira com o movimento Dogma dinamarquês de Lars Von Trier e companhia).

Por isso, fica evidente que a questão racial é importantíssima para o diretor e seus desdobramentos em Bróder são escolhas cruciais para o filme. Assim, o fato do filme ter um protagonista branco, Macu (interpretado por Caio Blat), que acha que é negro, que se comporta como um “mano”, é um dos pontos de partida que diferencia o filme. Apesar dessa preocupação, é interessante também que o filme não se limite a esta discussão. As tensões raciais dentro do filme surgem sempre diluídas nos conflitos sociais e afetivos, somando na construção dos personagens e da trama.

Outra relação que não é ocasional, é a escolha de filmar na periferia de São Paulo, no Capão Redondo. Jeferson é paulista e sua relação de intimidade com a cidade transparece na maneira como movimenta a sua câmera, que desliza com ligeireza pelos espaços – mesmo nas ruelas e becos mais apertados da periferia. Depois dos três amigos que se reencontram, o quarto personagem mais importante do filme é justamente o Capão Redondo. Há em torno do local um sentimento de atração e repulsa contínuo: um cadáver estendido no chão, a cordialidade entre os vizinhos, a sinuca do bar, a vigilância de todos por todos na janela, as crianças que brincam na rua, o som ininterrupto de tiros, todos os elementos se misturam de forma indiscernível. Todos compõem o mesmo Capão. Local do qual parece tão difícil sair para alguns personagens e ainda mais difícil retornar para outros.

A trama de Bróder acontece em cerca de 24 horas e começa no dia do aniversário de 23 anos de Macu, apelido para Marco Aurélio. Sua mãe, seu padrasto e seus dois meio-irmãos estão preparando uma pequena festa para comemorar – além da família, apenas o pastor, sua esposa e os dois amigos-irmãos de Macu, Jaiminho e Pibe. Ao contrário de Macu, nenhum dos amigos continuou na comunidade: Jaiminho tornou-se um jogador de futebol famoso e mora na Espanha; enquanto Pibe casou com a ex-namorada de Macu (fato que continua provocando certo estranhamento entre os dois) e decidiu tocar sua vida fora do Capão. Assim, temos o reencontro dos três amigos de infância que levam vidas totalmente distintas. Mas o dia está longe de ser festivo. Sem as perspectivas de saída, como os amigos, Macu se envolveu com os bandidos da região.

Nesse sentido, a maior tensão do filme não se concentra nas relações de amor e pequenos ódios entre os amigos e nem nas desventuras familiar-afetivas que os cercam. Os pequenos dramas do cotidiano, como uma gravidez indesejada, o alcoolismo do padrasto, a religiosidade da mãe, as disputas amorosas entre os amigos, tudo isso mostra-se contornável, superável, com algumas palavras e abraços – gestos que a câmera próxima de Jeferson De captura com muita ternura. A tensão do filme está na escolha feita por Macu – ou que fizeram por ele, nunca saberemos pois esta é anterior a narrativa – de entrar para o universo da criminalidade. Embora o rumo esteja definido, a questão acaba sendo se esta escolha irá de fato se efetivar. E como, quando isso acontecer, se dará a cisão entre Macu e o seu ambiente familiar e de amigos.

Tem-se, então, uma relação de proximidade e de distância eminente entre os personagens e entre estes e o ambiente. Aquelas podem ser as últimas 24 horas vividas por aquela coletividade de amigos e família; ao mesmo tempo, eles vivem um dia que não difere em nada de outros tantos que viveram no passado: bebendo, conversando, jogando futebol. Essa sensação é reforçada pelos movimentos da câmera: de um lado, muitas cenas com a câmera na mão, bem próxima aos personagens, participando de dentro das ações; de outro, momentos em que a câmera se torna aérea, filma afastada, de cima, mostrando a estrutura geográfica dos espaços e a estrutura de movimentação dos personagens.

A indecisão de Macu em abraçar a criminalidade é a mesma indecisão da câmera de Jeferson De em filmar o destino inevitável dos seus personagens. Um pouco como se para além do que o filme possa ter de esquematismo social ou moralismo latente, o diretor procurasse encontrar um gesto alternativo, uma outra forma de dizer. Resta ao espectador se situar entre esse movimento constante de aproximação e afastamento, possivelmente com a sua própria ambiguidade. Se resta uma fragilidade da representação que não sabe sempre de onde se faz, resta também a cumplicidade da eterna dúvida com a narrativa, seus espaços e personagens.

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