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Críticas

Cineplayers

O cortejo do mal.

8,5
Os contos de horror geralmente se apegam à oposição do bem contra o mal. Dentro da tradição religiosa cristã, historicamente representada nas telonas, a oposição ganha nomes num conflito binário: Deus contra o Demônio. É bem verdade que o ceticismo ou a crença pessoal do público implica diretamente na experiência de assistir a um filme. A qualidade da obra de horror não deve ser medida pelo quanto consegue provocar arrepio ou tensão, mas como o faz. Pouco importa crença ou descrença. Já a experiência do cinema oferece artifícios a fim de despertar sensações significativas para um filme de terror verdadeiramente funcionar. A direção se submete a uma proposta e o filme nasce. O horror de A Bruxa nasceu da dúvida da existência daquilo que seus personagens acreditam.
Num tribunal, uma família é acusada de blasfêmia. Essa família se desliga de uma comunidade, abraçadas ao sobejo da fé que duvidam que qualquer outro ser tenha tal como eles. Passam a residir ao lado de uma floresta onde cultivam o que consomem. Somos imediatamente apresentados a essa família. Aprenderemos e compreenderemos seus dilemas morais. A forma filmada pelo cineasta Robert Eggers parece querer demonstrar profunda tensão com um desespero iminente, como se a qualquer instante algo pudesse acontecer. A incerteza daquele contexto parece nos preparar para algum tipo de surto, pois a sensação é de tudo fazer parte de um pesadelo.  
A começar, a ambientação. A popularização de mitos e lendas ganhou espaço em diversas formas de representações artísticas. No cinema não foi diferente. Em A Bruxa, a inferência vem do cristianismo, a partir de uma família religiosa camponesa em 1630, na Nova Inglaterra. Vivendo segundo as tradições da igreja, a família passa por uma série de conflitos inexplicáveis e busca suas razões. A leitura que fazem encontra uma vítima a ser culpada. A culpa está personificada na pele de uma jovem mulher, acusada de feitiçaria. O que alimentou a inquisição, alimentará a ira de um povo temente frente a um mal invisível escondido numa floresta. E justamente por se tratar do intangível, a curiosidade impera.
A construção de toda a tensão é conduzida por ambientação, a partir da imersão contextual, da fotografia turva, da reprodução artística arcaica e da insegurança que a dúvida causa, assombrando com suas possibilidades. Eggers sabe que imaginar aterroriza mais do que vivenciar, uma vez que a imaginação não se limita. E é com esse artifício psicológico que o filme assombra, infiltrando a dúvida nas sombras. O horror é imediato e inconclusivo. Cenas de terror se misturam. Cenas envolvendo uma cabra – símbolo pagão – são aflitivas.
O medo! Não é preciso ver para sentir. Reconhecido dentro do filme, o percebemos dentro da narrativa a partir das ações quase insanas de seus personagens, reconhecendo aos poucos a realidade que estão experimentando. Há um fato consensual: uma criança desapareceu. Há relatividades para o fato, todas fortalecidas pelo ideal cristão da culpa. Vigiar e/ou punir. E veja, o filme não visa fazer uma crítica religiosa, todavia se apropria de sua visão para traçar o horror. É uma alçada ao sobrenatural, desenrolada com inquietações. Já mencionada, a sensação de um profundo pesadelo é natural por emular níveis de loucura.
O elenco é abarrotado de crianças, o que naturalmente causa mais tensão. Os diálogos são pontuais, limitados e muitas vezes narrados, com falas arrastadas. Ênfase na atriz Anya Taylor-Joy que vive Thomasin, extraordinária vivenciando uma vítima do medo, concedendo meiguice e delicadeza a sua personagem. É nela que o filme concentra.
Ele também apresenta um viés de autoridade convencional, estando o patriarca da família sempre à frente, iluminado e com uma posição confortável à mesa. Tradições são inabaláveis dentro desse núcleo. O diretor coordena a imagem e trabalha com disposição dos personagens em cena. Os sons diegéticos – galhos, vento, passos – e a fotografia atenta às sombras – o sol parece inexistir naquele espaço onde a iluminação mais evidente são de velas – favorecem a sensibilidade dramática. São atributos naturais em filmes de horror, o que diferencia aqui é ser independente de trilha para construir a percepção de temor. Eggers parece decidido em assumir os riscos e não cede a soluções simplórias.  
Nesse cenário, tudo é conjuntura para a imaginação ao que de fato reside no meio da floresta. O grande desafio da obra é manter esse clima sem desviar o foco, sem dispersar o suspense conquistado e o terror originado. Às vezes soa repetitivo, às vezes parece que não vai a lugar algum. Em sua coerência, o filme se mantém consistente e se torna um dos mais relevantes trabalhos do gênero lançado nos últimos anos. Há duas ou três cenas que provavelmente serão lembradas por algum tempo após a sessão. Além de tudo, além de perturbador e honestamente inquietante, soa profano.

Comentários (33)

Thiago | segunda-feira, 04 de Abril de 2016 - 16:01

(continuação)
Sobretudo quando confrontam-se aqueles de quem se suspeita e quem realmente comete atos falhos. Quanto à religião, ou a norma moral tão presente no filme, nesse sentido, sim, penso, é possível interpretar como a integridade do patriarca é construída na realidade diegética através da sustentação de uma austeridade religiosa.
De todo modo, acho que o filme poderia ter realmente explorado mais isso, dentre outras coisas, de forma a dar mais densidade à história.
Bem, é apenas uma interpretação. Prefiro evitar os comentários categóricos para evitar a problemática de atribuir ao filme um sentido fechado.

●•● Yves Lacoste ●•● | sexta-feira, 06 de Maio de 2016 - 11:09

Uma cena ou outra dá aquela tensãozinha ou medo (tipo a dos gêmeos brincando com o bode e o aparecimento da bruxa). Sem falar do destino dos personagens onde nem crianças são polpadas. O filme é um pouco arrastado sim, e esse quesito não combina em nada com o tipo de marketing que se propuseram a fazer: mal direcionado, tentando atrair o velho e conhecido público tradicional aos cinemas, sendo que A Bruxa é para um público altamente seletivo. Não é um filme ruim, de fato, e sim uma produção rica que faz referência a vários elementos da época, como o pecado, a sexualidade, a libertação feminina, a crítica à família e a religião... Porém, esse burburinho todo diante do mesmo como um dos melhores filmes de terror deste século por muitos, achei exagero!!!

Josiel Oliveira | quarta-feira, 18 de Maio de 2016 - 12:03

"E veja, o filme não visa fazer uma crítica religiosa, apenas se apropria de sua visão para traçar o horror."
Matou a pau. Foi justamente isso que eu esperava e o filme decepcionou.. mas realmente é um terror atmosférico competente e trabalha bem os simbolismos e o miticismo.

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