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Críticas

Cineplayers

De caçador a caçado.

7,0

ATENÇÃO: Este texto contém spoilers, então leia por sua conta em risco.

Em 1995, coincidentemente quando o cinema completava 100 anos de existência, o diretor Thomas Vintenberg, em parceria com seu companheiro Lars von Trier, criou um manifesto que ficou conhecido como Dogma 95. A ideia da dupla era tentar resgatar um cinema mais autoral e menos comercial, no sentido hollywoodiano do termo. Petulantes ou não, eles pregavam uma série de regras técnicas e temáticas que deveriam ser obrigatoriamente seguidas pelos filmes do movimento. Eis algumas delas: as filmagens deveriam ser em locação; só seria admitida a gravação com a câmera na mão, que só poderia se deslocar de acordo com os limites dos movimentos corporais (os travellings, portanto, estavam foram de cogitação); nada de filme de época: as histórias deveria ser ambientadas no tempo presente; eram terminantemente proibidos truques fotográficos e filtros. E por aí vai. Entre as obras que foram reconhecidas oficialmente como pertencentes ao Dogma 95 estão Os Idiotas (Idioterne, 1998), Mifune (Mifunes Sidste Sang, 1999), e Italiano Para Principiantes (Italiensk for Begyndere, 2000).

Talvez o seu principal representante tenha sido Festa de Família (Festen, 1998), primeiro filme do diretor Thomas Vintenberg e até hoje seu melhor trabalho. De lá para cá, ele tentou por diversas vezes repetir o mesmo êxito, seja dentro do conceito do movimento que criou, seja fora dele. Em nenhuma delas foi bem sucedido. Em algumas chegou perto (Querida Wendy [Dear Wendy, 2004]). Em outras, passou longe (O Dogma do Amor [It´s All About Love, 2003] e Submarino [Submarine, 2010]). O cineasta agora volta a cena com A Caça (Jagten, 2012), certamente seu filme mais bem acabado dos últimos anos, em que ele se propõe a discutir, por meio de uma falsa acusação de pedofilia, os efeitos causados pelo pré-julgamento na vida de um cidadão comum.

Lucas (Mads Mikkelsen) é um dos monitores de uma escola infantil de uma pequena comunidade rural na Dinamarca. Dedicado e paciente, os alunos o adoram. Todo dia de manhã, eles o aguardam por trás das árvores e dos arbustos para lhe pregar um susto. Mesmo sabendo da arapuca em que está prestes a entrar, Lucas embarca na brincadeira para o deleite da garotada. A franja que teima em cair na testa lhe dá um certo ar de criança desprotegida, que não combina com os seus 42 anos, altura imponente e óculos de intelectual. Se Lucas consegue divertir os filhos de outros pais, o mesmo não acontece com o seu próprio, Marcus (Lasse Folgelstrom), adolescente de 16 anos, a quem ele não consegue acesso por força do fim do seu casamento.

Umas das crianças da escola, Klara (Anikka Wedderkopp), parece ter uma especial afeição por Lucas. Filha do seu melhor amigo, Theo (Thomas Bo Larsen), ela percebe que é do professor que recebe a atenção que deveria naturalmente partir dos pais – que, de tanto brigarem, sequer notam as escapadelas da garota da própria casa e o seu estranho bloqueio com figuras geométricas. Querendo externar esse sentimento, Klara lhe dá um presente. Consciente das possíveis conseqüências daquele gesto, Lucas gentilmente o recusa. A estrutura emocional da menina de 6 anos não sustenta tamanha rejeição e, em troca, ela sugere à diretora da escola que Lucas a teria molestado sexualmente. A notícia se espalha pela comunidade. É o que basta para a vida do monitor virar do avesso.

Ao contrário de obras como Felicidade (Happiness, 1998), Sobre Meninos e Lobos (Mystic River, 2003), Pecados Íntimos (Little Children, 2006) e Dúvida (Doubt, 2008), que, direta ou indiretamente, abordam o tema da pedofilia, o interesse de Vintenberg é outro. Seu foco está no devastador efeito do pré-julgamento, da acusação sem provas, da declaração antecipada de culpa e na violação do devido processo legal. Para maximizar o efeito da sua mensagem, o filme não deixa dúvidas de que Lucas não é pedófilo. Que fique claro: a vítima é o adulto e não a criança. E mesmo sendo ele o alvo da mentira perpetrada por Klara, Vinterberg mostra que as conclusões precipitadas e infundadas de terceiros são suficientes para destruir a relação de confiança que ele mantém com a comunidade e, por conseqüência, excluí-lo do convívio social por completo.

Vintenberg já havia tangenciado o tema da pedofilia em Festa de Família. Lá, o protagonista aproveitava a reunião de todos os parentes para denunciar os abusos que sofrera do pai quando criança. Começava ali um dos retratos mais cruéis do esfacelamento de uma família já vistos no cinema. Mas há uma diferença essencial nos dois filmes. Em Festa de Família, o pai era realmente culpado, o que, de certa forma, nos fazia compreender a lavação de roupa suja que acompanhamos em seguida. Já em A Caça, a acusação de pedofilia é falsa. Por isso mesmo, a rejeição de Lucas pela comunidade nos causa raiva, indignação, repúdia, nojo, incompreensão. E o sentimento é potencializado ao vermos que o dedo em riste parte exatamente daqueles que, dias antes, brincavam com o mesmo Lucas nos lagos gelados da região e se fartavam ao redor de uma mesa, regada a muita bebida e camaradagem.

As crianças não mentem”, diz a diretora da escola. Me espanta o desconhecimento de uma profissional do assunto sobre o poder de manipulação dos pequenos. Sim, as crianças mentem! E muito! Sei do que estou falando porque vivencio essa experiência diariamente com os meus filhos. Desde cedo, elas descobrem, instintivamente, o poder da simulação, da transferência da culpa e da barganha. Felizmente, a maioria dessas pequenas mentiras é inofensiva e não produz nenhuma consequência no âmbito social. No entanto, é importante que os adultos estejam atentos a esse perigoso jogo e sempre partam da premissa que as crianças, mesmo sem ter a dimensão dos efeitos do seu gesto, nem sempre estão falando a verdade.

Além disso, a investigação conduzida pela diretora da escola é um erro do começo ao fim. Não que ela não tivesse que fazer algo a respeito. A acusação – talvez a expressão nem seja a mais adequada – de Klara era grave e a diretora precisava, ao menos, sondar o ocorrido. Ela não poderia, no entanto, dar uma conotação parcial às respostas dos investigados – especialmente às da criança – e extrair conclusões diferentes daquilo do que foi realmente dito. Exemplo disso é a cena em que Klara é abordada pelo assistente social. Por mais de uma vez, Klara refuta a sugestão inicial de que teria sido molestada por Lucas. Mesmo diante destas evidências, os dois profissionais saem da reunião ainda mais convencidos da responsabilidade do professor. Com base nestas conclusões, a escola comunica aos pais das outras crianças que Lucas poderia ter molestado mais de um aluno. Não demora nada para que uma verdadeira caça às bruxas se instaure na comunidade. Vintenberg mostra que culpa antecipada que será atribuída a Lucas poderia e deveria ter sido evitada se as partes envolvidas respeitassem o protocolo exigido pela situação e, sobretudo, o devido processo legal, expressão que, como se vê, não é tão teórica como se pensa.

Um dos aspectos mais criticados em A Caça é seu final. Para alguns, Vintenberg trai a confiança do espectador ao sugerir um entendimento entre Lucas e comunidade. Discordo. Com exceção de Theo, Lucas nunca pareceu guardar rancor daqueles que, após as suspeitas de pedofilia, lhe viraram a cara. Nem mesmo da própria Klara, de quem, afinal de contas, partiu a acusação. Prova disso é a cena em que ele, ao final, a pega no colo. Daí me parecer perfeitamente admissível aquelas pessoas serem capazes de resolver suas diferenças mesmo após eventos tão traumáticos. Além disso, a sequência final mostra o quanto esse alegado bem estar social é relativo, duvidoso e ambíguo.

Passados vários anos do lançamento do Dogma 95, Vintenberg já se permite introduzir em A Caça alguns recursos estilísticos que antes seriam impensáveis. A fotografia já é mais trabalhada (a sequência da ceia de natal e da igreja provam isso), a luz – ou a falta dela – já não é tão utilizada para se acentuar a crueza das situações (ela decorre da própria tensão da trama), e a inserção de trilha sonora não é um crime de lesa-pátria (vide a cena em que Klara corre ao ar livre, com a neve lhe caído pelo corpo). Em contrapartida, a sequência de Lucas no supermercado nos mostra um Vintenberg que ainda gosta de colocar em prática alguns dos princípios que lhe eram caros durante o auge do movimento. Esse equilíbrio entre o novo e o velho estilo, aproveitando as virtudes de cada um deles, só contribui para o resultado final de A Caça.

O elenco conta com atores de confiança de Vintenberg. O nome mais conhecido, obviamente, é Mads Mikkelsen. Com um carreira respeitada na Dinamarca (Corações Livres [Elsker dig for Evigt, 2002], Depois do Casamento [Efter Bryyluppet, 2006], O Amante da Rainha [En Kongelig Affare, 2012]), e com várias participações coadjuvantes em solo americano (Rei Arthur [King Arthur, 2005], Fúria de Titãs [Clash of Titans, 2007], 007 - Cassino Royale [Casino Royale, 2009],  e a série televisiva Hannibal), foi com A Caça que veio o reconhecimento da crítica. Seu retrato sutil e introspectivo de Lucas lhe valeu o prêmio de melhor ator no Festival de Cannes de 2012.

Temática forte e provocativa (impossível não reagir emocionalmente ao que se passa na tela), realização precisa (sem os exageros do Dogma 95), e interpretações na medida fazem de A Caça um dos melhores lançamentos e mais instigantes no circuito comercial brasileiro em 2013.

Comentários (12)

Wellington Marques | terça-feira, 22 de Julho de 2014 - 20:19

Podia ter avisado que tinha spoiler de Festen também! 😠

MARCO ANTONIO ZANLORENSI | sábado, 16 de Agosto de 2014 - 20:38

Bom filme, mas como já foi dito aqui, a falta de sangue do protagonista irrita, umas perguntas. Porque o irmão de Klara olha daquele jeito para ela na cena em que brincam com os duendes? Porque no final do filme ele vira o rosto quando encarado por Lucas? Tudo bem o protagonista é pacífico, mas da a impressão que existe algo errado com Klara, situação criada propositalmente pelo diretor? Para mim esse filme trata de uma situação clássica quando você é suspeito de algo em uma cidade pequena, pode ser linchado antes de que se prove qualquer coisa! Não gostei do fim e não vou falar sobre pois alguém pode não ter assistido! RECOMENDO!

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