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Críticas

Cineplayers

O thriller metalinguístico de Monte Hellman.

8,5

    ─ Meu único crime é querer deixar esse lugar.
    ─ O meu, não querer deixá-lo.

Caminho Para o Nada (Road to Nowhere, 2010), título que poderia valer para a maioria dos filmes do seu diretor (desde os faroestes abstratos estrelados por Jack Nicholson nos anos 60), se num primeiro contato desconcerta o público é porque, dentre outros motivos, pode nos fazer acreditar que o cineasta mal conta uma história. Caminho, como trajeto, percurso; nada, como destino, lugar nenhum e esvaziamento absoluto, com os seus personagens submersos na mais densa escuridão e apagamento (como o desfecho de Corrida Sem Fim [Two-Lane Blacktop, 1971], em que a película se esgarça na tela e o filme se auto-implode); eis algumas das chaves do cinema de Hellman e desse filme novo em particular, que representa o seu retorno depois de vinte anos sem dirigir um longa-metragem.

Se num primeiro momento muitos podem duvidar que uma história esteja, de fato, transcorrendo na tela, é porque suas camadas não se apresentam assim tão claramente, diante da pressa do olhar do espectador ávido pelas imagens concebidas por Hellman, o que torna sempre difícil lidar com a expectativa e não permanecer em um misto de frustração e deslumbramento, mas sempre em imersão absoluta, numa obra que começa e se encerra nos seus prazeres estéticos e narrativos. Mas é também para se pensar e crescer em nossa cabeça enquanto repensamos depois de vê-lo, e sempre distante dum cinema de historinha, uma vez que sua narrativa se dispersa e se conecta ao longo da projeção em direção a um fechamento total sobre si mesmo, em torno do acúmulo de três tempos narrativos, que se desdobram em outras tantas camadas.

Logo no início somos apresentados a personagem de Dominique Swain, que insere um DVD-r em um computador, enquanto a câmera vai se aproximando da imagem que surge na tela do laptop, onde começa um filme chamado Road to Nowhere que toma toda a tela do filme de Hellman, nos fazendo acompanhar trechos desse filme dentro do filme, que inclui o estopim de um tiro dentro de uma casa que só enxergamos por fora, um disparo que dá origem a uma morte cujo mistério ainda não foi solucionado, envolvendo uma jovem e um político muito mais velho. O filme de Hellman vai e vem com o processo de filmagem e construção desse filme enquanto ele está sendo rodado (e que por vezes se confunde com o próprio filme de Hellman), intercalando com uma montagem alternada em torno do crime o qual o filme-dentro-do filme se baseia, e um terceiro eixo funcionando em volta das conversas entre o personagem do diretor que realiza o filme, Mitchell Haven (Tygh Runyan) ─ cujas iniciais propositalmente coincidem com as do nome de Hellman ─ e a blogueira interpretada por Swain, responsável por coletar as informações sobre o caso que serviriam de fonte para o filme em questão.

Mais que um puro exercício de metalinguagem, Caminho Para o Nada vai se desenvolvendo como um jogo com o espectador, incorporando a equipe do diretor fictício ao filme que está sendo rodado, e a escolha e relação intrincada do trabalho dos atores às personagens e ao realizador que os comanda. Paralemente, constrói uma ideia de filme policial (vagabundo ou sofisticado, tanto faz) muito mais que propriamente a de um filme de gênero em si, com conspiração e múltiplas pistas na investigação do crime ainda não esclarecido, que envolve uma fraude a uma companhia de seguros, e o detetive contratado por essa companhia para investigar o caso. E há também as mulheres nos filmes de Monte Hellman, cuja natureza e presença fugidia são sempre rodeadas de um mistério cuja revelação nos escapa, desde a pistoleira sem nome interpretada por Millie Perkins em Disparo para Matar (The Shooting, 1967), de trajes escuros e origem e propósitos desconhecidos, cabelos longos e rosto bonito, feminina porém dotada de invulgar coragem masculina. Ou as garotas interpretadas por Laurie Bird em Corrida Sem Destino e Jenny Agutter em China 9, Liberty 37 (Amore, piombo e furore, 1978), cujos olhares repousam em meio a melancolia das trajetórias incertas das solidões dos homens a que acompanham. Em Caminho Para o Nada, temos a loira (Swain), que esconde dinheiro em sua calcinha, e a morena de comportamento ambíguo interpretada por Shannyn Sossamon, que encarna também a protagonista feminina no filme-dentro-do-filme e fora dele se relaciona com o seu diretor.

Quando vemos os fragmentos rodados pelo cineasta fictício, pouco importa qual seja a realidade, ou se estamos em um filme dentro do filme, é tudo encenação, com ou sem as diversas intervenções da própria câmera que irrompe na tela; o que de uma forma ou outra enxergamos em cena uma intriga policial que se torna o âmbito de um mistério e um dos centros de interesse da película e de quem está assistindo. Caminho Para o Nada poderia estar inscrito na linha de certos filmes-ensaios de Abel Ferrara, aqueles que não pertencem a nenhum gênero específico (terror, policial, ficção cientifica) e que lidam sobretudo com todo um repertório de imagens e a verdade particular que se pode extrair delas. Hellman joga com a noção do que é filme, processo fílmico, e a realidade por trás do assunto que trata, confundindo o que é real com a ficção que vai tomando corpo. No clímax, o diretor pega a câmera digital e filma sua equipe gravando-o. O processo se completa e o filme se fecha sobre si mesmo.

Comentários (6)

Adriano Augusto dos Santos | terça-feira, 12 de Junho de 2012 - 10:19

Uau ! Que texto excelente de Lazo,100% igual com o que achei.
E fala muito bem da trama sem revelar nada e a desdobrando totalmente.

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