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Cassino

(Casino, 1995)
8,3
Média
700 votos
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Sua nota

Críticas

Cineplayers

O réquiem da geração Nova Hollywood.

9,0

Nunca faltou quem diminuísse Cassino (Casino, 1995) como pouco mais que uma recauchutagem de Os Bons Companheiros (Goodfellas, 1990), o anterior filme de gângster que Martin Scorsese dirigira cinco anos antes. O que eventuais detratores esquecem é que, ao invés de mera repetição, um dos predicados de grandes cineastas é o estilo consistente e reconhecível e o aprofundamento de temas aos quais retornam dentro de um universo similar. Uma questão de renovação e diferença. O que é constante em filmografias como as de Hitchcock e Howard Hawks, que em mais de uma oportunidade deixaram a impressão de refazer um mesmo filme para criar outro parecido e ao mesmo tempo tão distinto. Dito isso, não é exagero apontar que Cassino é para Os Bons Companheiros o mesmo que um Onde Começa o Inferno (Rio Bravo, 1959) foi em relação a Rio Vermelho (Red River, 1948) dentro da obra de Hawks.

A primeira meia hora de Cassino por vezes desafia a capacidade de apreensão do público, podendo aborrecer os incautos como se ela sofresse de uma desordem em sua estrutura, narrando as coisas muito rápido para amplificar o tempo dramático (o período de horas, dias, meses da ação narrada), com uma montagem que busca, por meio de cortes rápidos, acelerar a narrativa, em uma sucessão de ações desesperadas ou nervosas, num começo que muda constantemente o foco de sua atenção porque o relato tem que avançar. São características que viriam prejudicar alguns dos filmes posteriores de Scorsese, da mesma forma que em Cassino todas aquelas narrações em voice-over podem incomodar pelo excesso, interferindo em demasia no que é mostrado na tela, bem como a elevada utilização de canções pops da época retratada no filme (que inclui Little Richard, Dean Martin, Stones, etc.) como pano de fundo a todo o momento.

Os Bons Companheiros pode parecer melhor justamente porque o seu trabalho de edição é muito superior. Ledo engano.  Em Cassino o cineasta contorna os seus problemas imprimindo um ritmo tão frenético, com uma dinâmica de câmera e de cortes que aos poucos vai equilibrando os pormenores apontados acima, fazendo com que seu filme milagrosamente vá entrando nos eixos, como se todas as deambulações do começo fossem preparações do terreno prestes a explodir. Joe Pesci também pode parecer um problema, ele sim praticamente um xerox do papel que representara em Os Bons Companheiros (em mais de uma ocasião durante o filme, pensava comigo mesmo que Scorsese poderia ter utilizado algum ator diferente, como Harvey Keitel, por exemplo, que também estava no auge naquele período). Mas não tem jeito: Pesci é tão marcante com esse seu personagem, e oferece literalmente todo o seu sangue, seu suor e seus poros, que após as três horas de projeção de Cassino é impossível imaginá-lo não atuando no filme.

O que Cassino nos apresenta é um mosaico repleto de marginais, drogados e prostitutas, reconstituindo um violento e vasto painel de uma época não tão distante da nossa, com uma técnica e narrativa circular, febril e labiríntica, e que ao final nos deixa moídos e de joelhos. Para tanto, Scorsese recupera o talento do lendário Saul Bass, responsável pela já clássica cena de abertura ao som de A Paixão Segundo São Matheus, de Bach, uma sequência que está ali logo no começo para que não duvidássemos de nada de mais prodigioso que Cassino poderá nos oferecer dali em diante.

Não lembro muitos outros filmes de gângsters que mostrem de maneira tão exaustivamente rica em detalhes uma relação de amizade entre dois homens em todas as etapas de uma vida, desde um começo em que se acredita que as amizades são eternas, até o passar dos anos a corroer lentamente os laços que os prendem, e a hora que já não é mais possível andarem juntos. Do mesmo modo que filmes policiais não costumam se deter com muito interesse na relação destrutiva entre marido e mulher e fazer disso um dos núcleos principais do seu foco como em Cassino (o que torna mais pertinente a utilização do Theme de Camille, de O Desprezo [Le Mepris, 1963], algo que já me faria simpatizar com qualquer filme nessa circunstância), o que permite uma rara oportunidade de brilho para Sharon Stone (possivelmente uma das estrelas mais sub-aproveitadas na Hollywood contemporânea), que começa tão glamorosa, mas vai se devastando a cada minuto da película, até sucumbir em frangalhos na sarjeta de um corredor após sair de um quarto de hotel, depois da ultima overdose. Ok, Sharon Stone sempre foi uma atriz limitadíssima, porém é impossível não reconhecer-lhe os méritos nessa sua participação em Cassino, que fez o velho e detestável escritor e jornalista Paulo Francis literalmente babar pela estrela loura pouco antes dele morrer.

E é tão gratificante ver Robert De Niro ainda no auge da sua forma (foi um dos seus últimos grandes filmes), dessa vez como um verdadeiro protagonista, não o coadjuvante desperdiçando seu talento e servindo de escada para um intérprete tão abaixo dele como Ray Liotta em Os Bons Companheiros. E como esquecer o enquadramento no deserto, com a vastidão daquele espaço tão ermo servindo de encontro aos dois homens cheios de contas a ajustar? O crítico português João Bénard da Costa (provavelmente quem melhor escreveu sobre Cassino) comenta que “nunca, depois de Renoir, tinha visto, assim, enquadrados em leve contra-plongée, dois homens contra o céu, sabendo um que a única possibilidade de sair vivo dali é manter o outro sob o poder do seu verbo e aprendendo o outro, que o escuta, que aquele é o único homem que nunca será capaz de matar”.

Para alguns, Cassino pode ter suas falhas e ser assim tão disperso, mas é tão apaixonante mesmo com os seus supostos erros e dispersão que seria impossível imaginá-lo diferente e menos majestoso e alucinante. Da mesma forma que nos anos sessenta filmes como O Homem Que Matou o Facínora (The Man Who Shot Liberty Valance, 1962) e Hatari! (idem, 1962) marcam o fim do cinema clássico americano, que decaía em paralelo ao surgimento dos cinemas novos pelo mundo, incluindo o da Nova Hollywood, Cassino pode ser o ponto que representa simbolicamente o final da geração dos grandes diretores dessa Nova Hollywood, o ultimo dessa turma toda em pleno vigor do seu potencial criativo (isso vale também para os atores dessa geração, De Niro e Pacino, do mesmo modo que o valia para Wayne e Stewart nos anos 60), enquanto surgiam novos nomes para ocuparem seus espaços: Tarantino, James Gray (o único a apresentar uma consistência não encontrada em seus contemporâneos), Michael Mann (este de uma geração anterior), Fincher, quem mais? É certo que os cineastas saídos da Nova Hollywood (podemos falar também em Carpenter, Eastwood e De Palma) continuaram trabalhando, e dirigindo filmes até excelentes (como os próprios Hawks, Ford e Hitchcock em seus finais de carreiras), mas como zumbis realizadores, enquanto não chega a hora de serem definitivamente mortos e enterrados. Por coincidência, o próprio enredo de Cassino lembra as trajetória desses diretores da Nova Hollywood, que como os gangsteres do filme, se encontraram e tiveram seus auges juntos nos anos setenta, para na década seguinte perderem a força, decaírem, ou ficarem pelo caminho.

Por ter vindo depois de Os Bons Companheiros, é um filme que passou a impressão de repetição, quando na verdade ele retoma e leva os temas do filme anterior a um passo adiante, um passeio pelo céu e o inferno de um mundo tão exuberante quanto concreto e verdadeiro aos nossos olhos.  Uma revisão de ambos pode tornar evidente que Os Bons Companheiros era mais um ensaio para o filme posterior do que propriamente uma obra melhor, com cujo espírito reaparecendo de forma clara e mais acentuada em Cassino. Um filme que acaba sendo sobre a queda e falência de alguns dos valores mais profundos que, sob o domínio das corporações e como uma grande Disneylândia atual, como pronunciado por um dos protagonistas no desfecho, resultara no triunfo da massificação, do consumismo, propaganda, do medo, e do apego ao lucro, o que é parte desse nosso mundo, e por extensão, do próprio cinema.

Comentários (31)

Cristian Oliveira Bruno | sábado, 23 de Novembro de 2013 - 17:59

Desde que comecei a comentar aqui no C.P., venho repetindo que Scorcese é meu cineasta favorito. Esse filme foi o primeiro que eu vi do mestre e, também, foi o primeiro filme realmente violento que me impressionou. Eu ainda era pré-adolescente quando assisti a chocante cena do espancamento com bastões de baseball. Um espetáculo sangreto que ficou na minha memória até hoje e me fez conhecer esse meu ídolo que é Martin Scorcese.
Sobre as duas atuações de Pesci, eu me deleito com ambas, pois são primorosas. Pior seria ter de assistir duas vezes uma atuação ruim.

Paulo Matheus | sexta-feira, 24 de Janeiro de 2014 - 00:20

Excelente crítica. Quando vi Cassino pela primeira vez, não achei grande coisa. Pude rever hoje e subiu muito no meu conceito.

Paulo Matheus | sexta-feira, 24 de Janeiro de 2014 - 00:23

Quase tive orgasmos com as músicas dos Stones no filme...

Matheus Câmara | quarta-feira, 05 de Março de 2014 - 10:25

Mas que puta texto do Lazo! Essa maravilha merecia uma dissertação a altura. Muito bom.

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