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Críticas

Cineplayers

Mesmo não sendo dos melhores de John Ford, é um filme injustamente esquecido.

6,0

Pegue alguns cinéfilos ao acaso e peça a eles que relacionem seus 10 filmes preferidos de John Ford. Posso dizer sem medo de errar que O Céu Mandou Alguém não figurará em nenhuma das listas. Se é fato que esse título realmente não está entre os melhores da obra do diretor, também é certo dizer que o público e a crítica não foram lá muito justos com o filme ao longo dos últimos anos. Talvez prejudicado pelo excesso de reprises na televisão em épocas natalinas – mais que um faroeste, o público sempre o assumiu como um "filme de natal" – O Céu Mandou Alguém possui algumas qualidades inegáveis, como a interpretação de John Wayne (especialmente no terço final); a espetacular fotografia em cores de Winton C. Hoch (uma das melhores para um filme de Ford); e o uso das paisagens naturais como um elemento a mais na caracterização dos personagens (no caso, o Deserto de Mojave e o Parque Nacional do Vale da Morte, ambos na Califórnia).

Em 1948, John Ford já era um dos diretores mais respeitados de Hollywood. Os chefões dos estúdios se rendiam ao seus dois Oscars, conquistados no início da década pelos dramas As Vinhas da Ira e Como Era Verde Meu Vale, e lhe concediam um privilégio raro na época: o direito ao corte final. Mas na indústria do cinema americano, nem John Ford estava imune às conseqüências de um fracasso. E isso aconteceu com o lançamento de Domínio de Bárbaros. O público não engoliu a mensagem religiosa da fita e o seu desastre comercial obrigou os executivos a rever o acordo com o diretor. A partir dali, se quisesse dinheiro para seus novos projetos, Ford teria que voltar ao faroeste.

Ele já vinha alimentando a idéia de realizar a sua trilogia sobre a cavalaria americana (que seria composta por Sangue de Heróis, Legião Invencível e Rio Grande). Mas assim que soube morte de Harry Carey, aos 69 anos, ele mudou de idéia. Em homenagem a um dos atores com quem mais trabalhou nos tempos do cinema mudo – ou até em arrependimento ao modo como o tratou no set de filmagem – Ford resolveu refilmar o romance de Peter B. Kyne, que ele mesmo levara às telas em 1919, sob o nome de Os Três Padrinhos, justamente com Carey como protagonista. É com a sua imagem (interpretado por um dublê) empinando um cavalo, sobre uma montanha criada em estúdio e um falso pôr-do-sol, que John Ford inicia sua história e acerta as contas com o passado.

A narrativa começa com três vaqueiros chegando à cidade de Wellcome, no estado do Arizona. São eles Robert (John Wayne), William (Harry Carey Jr.) e Pedro (Pedro Armendariz). Eles pretendem assaltar o banco local. Estranhamente não parecem violentos e cruéis. E, de fato, se pudessem escolher, a preferência deles seria pelo roubo de gado, bem menos perigoso. O trio logo tenta fazer amizade com alguns moradores da região. O primeiro com quem puxam conversa é Perley ‘Buck’ Sweet (Ward Bond). Para azar deles, aquele homem simpático, bem casado e que gosta de cuidar do jardim da sua casa, é o delegado local. Sweet é bom de prosa, serve café para os convidados, mas não é bobo. Alguma coisa lhe diz que os forasteiros vieram com segundas intenções. No momento que ele reconhece a foto de um deles num arquivo de procurados pela justiça, ouve-se tiros. É o bando colocando o plano do assalto em prática. Eles fogem para o meio deserto. No percurso, com um deles baleado e todos morrendo de sede, o grupo encontra com uma carroça abandonada. Dentro há uma mulher (Mildred Natwick) que acabou de dar à luz a um menino. Ela está muito fraca e parece que não vai resistir. Antes de morrer, porém, pede que eles cuidem da criança. A partir dali, nada terá mais importância na vida daqueles fora-da-lei a não ser dar conta da responsabilidade que lhes foi confiada. Os homens iniciam sua jornada em busca não apenas da salvação do garoto, mas também da própria redenção pessoal.

O Céu Mandou Alguém tem os elementos típicos de um filme de John Ford, em especial a simplicidade da narrativa e a economia de meios. Dois momentos chaves da história, por exemplo, não são encenados, como o assalto ao banco e o encontro do personagem de John Wayne com a mãe moribunda (que é inteiramente narrado pelo ator). E mesmo sem eles a narrativa não perde em nada da sua força. Além disso, se havia algum diretor que sabia onde posicionar a câmera, esse alguém era John Ford. O filme possui alguns planos que impressionam pela beleza plástica e pelo respeito às regras da espaço cinematográfico. Veja-se a cena em que Pedro se aproxima da mãe e do menino recém-nascido. O vaqueiro surge do lado de fora, emoldurado pela lona da carroça. No extra-campo ouve-se a voz da mulher, pedindo ajuda. Tudo muito simples, eficaz e poético. Em outra passagem, os vaqueiros se afastam da carroça deixando para trás uma cruz indicando o local em que acabaram de enterrar a mãe. Ford filma a cruz no primeiro plano e os vaqueiros no segundo. Tudo decupado numa única tomada. Nos filmes de John Ford o menos era realmente o mais.

Outra característica do diretor que também está presente em O Céu Mandou Alguém é o humor. Essa marca registrada do diretor carrega consigo uma contradição: apesar de Ford sempre inserir um alívio cômico em suas histórias, nem sempre eles eram bem trabalhados. Pode-se dizer que muito de seus filmes envelheceram justamente nesse particular. É o caso, por exemplo, de Rastros de Ódio, que ficou datado nas passagens cômicas (veja-se as cenas em que Vera Miles banha Jeffrey Hunter e as protagonizadas pelo personagem Moss Harper). Em O Céu Mandou Alguém isso não acontece. Aqui, a graça sai do contraponto entre a brutalidade dos três cowboys e a pureza da criança. Não é possível ficar indiferente às expressões de John Wayne, sentado num banquinho e cuidando do bebê. Também funciona uma das falas recorrentes do roteiro ("Robert, William, Pedro!"), que revela o modo como cada um tenta impor sua personalidade ao recém-nascido.

Ao contrário da maioria dos faroestes dirigidos por John Ford, O Céu Mandou Alguém não foi filmado no Monument Valley, seu cenário natural preferido. Ainda assim, é difícil lembrar de uma obra do diretor em que o elemento externo desempenhe uma função tão decisiva quanto aqui. A fotografia acentua a imensidão do deserto, o azul do céu que nunca acaba e o sol opressor. Ford filma seus atores geralmente na contra-luz, fazendo com que o público os veja apenas pela silhueta. O efeito rouba dos personagens seus rostos – e portanto, suas identidades – e intensifica suas insignificâncias diante do mundo – e do destino – que os cerca.

O Céu Mandou Alguém tem problemas evidentes. O primeiro deles é a excessiva demora para se entrar no tema central. Quando os protagonistas encontram a criança, o filme já conta com quase 40 minutos de projeção. Há um hiato muito grande entre o início da fuga dos assaltantes, que se dá logo após o roubo ao banco, e o momento que eles se deparam com a carroça abandonada no meio do deserto. Além disso, as referências do roteiro à passagem bíblica dos Três Reis Magos poderiam ser mais sutis (esse mesmo problema de carregar na tinta ao falar sobre temas religiosos já havia aparecido em O Delator e Domínio de Bárbaros). Não era necessário que a semelhança entre as histórias fosse anunciada pela boca dos personagens ou por determinados elementos simbólicos (como o nome da cidade para a qual eles estão fugindo – Nova Jerusalém – e a aparição do burro mais ao final da fita). Esses ingredientes soam um pouco artificiais e mostram uma intenção do filme de querer parecer mais solene e importante do que realmente é. Por último, o final escolhido por Ford não é dos mais felizes. Nunca se saberá se ele foi imposto pelo estúdio (apesar de bancado pela sua própria produtora, o filme foi lançado pela MGM), mas o fato é que a opção do diretor – que é diferente da versão muda – não coincide com o tom sombrio e trágico da história.

O elenco conta com o grupo de confiança de John Ford. No papel de Robert, John Wayne comprova que realmente foi um dos atores mais subestimados da sua geração. Ele brilha nas cenas em que embala a criança e, em especial, na sequência da alucinação. Harry Carey Jr. está discreto e minimalista como o jovem William (o garoto de Abillene). Pedro Armendariz compõe o mexicano Pete com muita força e dignidade. Qualquer semelhança entre ele e Tuco, personagem interpretado por Eli Wallach em Três Homens em Conflito, de Sérgio Leone, talvez não seja mera coincidência. Completam o clube os sempre confiáveis Ward Bond, Ben Johnson, Jane Darwell e Guy Kibbee. John Ford realmente não mexia no time que estava ganhando.

No balanço final, o resultado é mais do que positivo. Se o filme não pertence ao creme de la creme da obra de John Ford, por outro lado chega-se a constatação que O Céu Mandou Alguém é bem melhor do que a fama que adquiriu ao longo dos anos.

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