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Críticas

Cineplayers

O documentário mergulha no cinema da diretora belga Chantal Akerman para discutir questões sobre o fazer cinematográfico.

8,0

Chantal Akerman, De Cá (idem, 2010) é um filme sobre o Cinema – com “c” maiúsculo, para marcar o escopo geral da arte que o documentário tematiza. Assim, apesar de partir de uma entrevista com a realizadora belga Chantal Akerman, o que o filme de Gustavo Beck e Leonardo Ferreira discute (e filma) vai além dos procedimentos cinematográficos dessa diretora. Isso porque, para adentrar no universo de Akerman, o filme estabelece os seus próprios dispositivos – que ao mesmo tempo imitam e contradizem o cinema da diretora. Temos, dessa forma, um encontro de mise en scènes – encontro que se dá, sobretudo, como disputa por controle. Disputa também de linhas de forças cinematográficas entre os diretores, os personagens reais (entrevistador e entrevistada) e o espectador.

Como dispositivo, Chantal Akerman, De Cá parte da simulação de um enquadramento dos filmes de Akerman: temos o quadro dentro do quadro, simétrico e fixo. A câmera encontra-se em um corredor; no primeiro plano temos uma parede e uma porta aberta (que recorta o quadro); no segundo, temos a mesa e a cadeira em que se sentará Akerman – no início do filme, o quadro (que permanecerá o mesmo até o final) encontra-se preenchido apenas por estes objetos, sem pessoas. O quadro é montado de forma que a diretora belga é a única a aparecer durante a entrevista – o entrevistador e as outras pessoas da equipe estão fora de campo quase o tempo inteiro. Outro procedimento inspirado na obra da diretora é o de realizar o documentário em um único plano sequência, com a câmera imóvel: assim, são as pessoas que entram e saem do quadro. A organização rígida dos objetos em cena e o “tempo real” das ações (voltaremos a essa discussão sobre o tempo) instalam o espectador em uma releitura do universo akermaniano. Filmes como Jeanne Dielman (Jeanne Dielman, 23 Quai du Commerce, 1080 Bruxelles, 1975), O Quarto (La Chambre, 1972), Tombée de nuit sur Shanghai (episódio da diretora no filme coletivo O Estado do Mundo, 2007), entre tantos outros, são transportados imediatamente para dentro da experiência desse documentário.

Em uma primeira disputa pelo domínio da mise en scène a entrevistada Chantal Akerman parece determinada a desestabilizar a harmonia dos elementos no quadro proposta pelos diretores. Assim, ela começa a entrevista sugerindo que coloque-se uma almofada na sua cadeira, para melhorar sua postura e torná-la compatível com o tamanho da mesa. Em seguida, Akerman reposiciona a bandeja de água repetidas vezes. E, por fim, ela decide acender a um cigarro, mesmo depois de ser informada que isso é estritamente proibido dentro do prédio público em que se realiza a gravação. Nesse momento, na insistência da pequena contravenção de fumar o seu cigarro, Akerman conquista certo controle sobre a narrativa do documentário pois cria um desvio de roteiro, uma possibilidade mais forte para a indeterminação e compartilha com os presentes as consequências virtuais (pois nunca se atualizam) dessa ação. Há o desconforto da contravenção e, ao mesmo tempo, a cumplicidade do encontro, do momento. Apagado o cigarro, o filme encontra-se em outro patamar de correlações de forças. A estrutura pesada dos sob-enquadramentos não parece mais tão sufocante. Entre tantas linhas de forças é possível uma linha de fuga do encontro.

Esse patamar pode ser notado principalmente na outra estratégia do filme para adentrar o universo de Akerman: um roteiro de perguntas elaboradas sobre o cinema e o seu modo de fazer cinema. Se o campo das imagens está mais próximo da emulação dos filmes de Akerman, o campo discursivo estabelece uma contradição evidente entre entrevistado e entrevistadora.  Às perguntas complexas e bem construídas teoricamente, a diretora reage com uma contida aversão ao discurso acadêmico/jornalístico. Aversão que se manifesta mais evidentemente na recusa de responder algumas questões (como na primeira, quando a perguntam: “o que é o cinema?”); na impaciência de explicar seus procedimentos (a diretora fala bastante em intuição e inconsciente para justificar a impossibilidade de teorização) e em alguns momentos divertidos (sobretudo quando Akerman fala que a única coisa que ela ainda quer fazer é voar).

Mas esse descompasso de discursos, longe de ser um problema para o filme, é um dos seus pontos fortes. Pois é exatamente nesse campo que vemos travada a disputa pelo controle na construção de um sentido. Sentido que não é dominado por Akerman, nem por Gustavo Beck e Leonardo Ferreira e, muito menos, pelo espectador. Sentido sobre o que é fazer cinema que se faz e desfaz a cada resposta, a cada silêncio de hesitação, a cada interferência imprevista no quadro. A linha de fuga traçada pelo cigarro aceso de Akerman é decisiva também para criar uma zona de troca mais generosa. A partir de certo momento, há uma troca mais efetiva (e afetiva) entre os discursos. Nunca em consenso ou homogeneidade, mas em uma zona de encontros no/do cinema.

Voltamos, por fim, à questão do “tempo real”, que é abordada em uma pergunta para a diretora. Akerman corrige prontamente o entrevistador dizendo que em seus filmes não se trata de “tempo real” e sim de “tempo reconstruído”. Para a diretora, uma experiência cinematográfica significativa passa pelo tempo dos filmes sendo sentido no corpo do espectador. De Chantal Akerman, de cá podemos dizer que saímos do cinema impregnados do filme em nosso corpo.

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