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Críticas

Cineplayers

“Help me make it through the night”.

9,0
Orson Welles dizia que a vida de John Huston era bem mais interessante que seus filmes. O diretor de A Marca da Maldade (Touch of Evil, 1958) tinha razão em termos. Huston muitas vezes procurava a aventura, o exotismo, as caçadas e bebedeiras enormes com amigos e mulheres, o que conferia à sua personalidade um espírito aventureiro fascinante e sedutor (e que inspirou um belo filme de Clint Eastwood, Coração de Caçador [White Hunter, Black Heart, 1990]). Era aventureiro por natureza, na linha de Ernest Hemingway: pugilista, caçador, pescador. Isso ajudou também com que se desinteressasse por muitos filmes que assumiu, ou então em determinadas épocas aceitasse dirigir qualquer material que lhe oferecessem, deixando sua carreira um tanto irregular, desleixada e frouxa. Quando errava, era capaz de cometer barbaridades como O Bárbaro e a Gueixa (The Barbarian and the Geisha, 1958), O Passado Não Perdoa (The Unfogiven, 1960), etc. Em compensação, quando acertava, seus filmes eram por vezes fascinantes, inesquecíveis, como esse Cidade das Ilusões, possivelmente o ponto alto da sua carreira. 

Pugilistas anônimos, são os protagonistas Jimmy Tully (Stacy Keach , extraordinário),  veterano em decadência sem ter conhecido a oportunidade do auge, e Ernie Minger (um muito jovem Jeff Bridges), começando com alguma perspectiva de glória, esperança esta com os dias contados. Um mais novo e o outro o espelho em que o mais jovem teme se enxergar cinco, dez anos depois. Fat city é sobre boxeadores, mas não gira em torno das habilidades de seus praticantes ou das lutas dentro das quatro cordas do ringue. Lutas de boxe sugerem algo de uma dança de marionetes, ainda que pareçam uma contenda de cavalheiros perto da selvageria de um marco civilizatório dos esportes como é o MMA hoje em dia. Centrando-se nos personagens mais do que no esporte em si, opera uma descentralização de foco dentro do subgênero dos filmes de boxe, para realçar o confronto de cada lutador consigo mesmo e com o mundo que os rodeia. As batalhas inexpugnáveis das quais emergem a poesia que no filme emana do contato dos personagens com a selva de concreto da cidade das grandes ilusões. 

Um filme de um veterano do cinema americano clássico dirigindo na contracultura, na Nova Hollywood. O próprio Huston era um resistente, enquanto seus colegas de geração em sua maioria não filmavam mais ou filmavam muito pouco. Huston passara pela Depressão americana dos anos 30, muito mais um problema econômico, porém um tanto equivalente ao período de crise moral do começo dos setenta nos EUA em guerra com o Vietnã e as contestações da opinião pública dentro do próprio país. Uma ressaca de corpo e de alma. 

Fat City é como se personagens perdedores em relação ao sonho americano da literatura de Charles Bukowski estivessem em um drama realizado por Clint Eastwood. Numa corda bamba entre o desemprego e trabalhos ruins em troca da sobrevivência (as sequências no laranjal são muito boas, especialmente quando um empregado conta como perdeu a mulher por causa do vinho e de um buquê de rosas), as visitas constantes ao bar e cabeçadas na máquina de jukebox e uma das personagens femininas cujo namorado negro está na prisão e diz que os brancos se sujaram desde que Colombo descobriu a Sífilis em 1492. Huston prefere mostrar as derrotas do novato ao invés de suas vitórias, o que exacerba o suspense pelo resultado da luta do retorno do mais velho a um ponto quase exasperante. Independentemente do resultado, parecemos saber que seu posterior destino não fugirá muito do previsível. Destaque também para a bela e melancólica canção-tema de Kris Kristorfferson (a trilha seria citada num diálogo em Taxi Driver [idem, 1976]), cantor que depois estrelou alguns dos melhores e mais violentos filmes de Sam Peckimpah e Michael Cimino.

O material vai de encontro com a obsessão de Huston com a noção de eterna derrota. A temática do fracasso domina a sua obra (ao menos nos seus melhores filmes): ninguém fica com o Falcão Maltês, o tesouro de Sierra Madre é espalhado pelos ventos, os homens que queriam ser rei são destronados, os envolvidos no roubo das joias morrem ou são presos... Vale a tentativa, o esforço, não o resultado final, segundo a moral de Huston. Uma lição para todas as épocas, e que culmina em Cidade das Ilusões, que nas palavras do próprio Huston em sua autobiografia, é sobre gente que se vê derrotada antes de sequer começar, porém nunca desiste de sonhar.

Comentários (13)

Jules F. Melo Borges | quarta-feira, 29 de Junho de 2016 - 11:00

(Nem assisto Game of Thrones, nem séries além de uns desenhos...)
Nem de longe eu sou obcecado com spoilers (Embora eu evite uns trailers antigos com mais de 5 min), mas ainda acho que o que você fez aí foi me entregar toda a "alma" do filme e jogar o corpo fora. Não era algo totalmente imprevisível visto os outros filmes do Huston que eu já vi, e o que já tinha lido sobre 'Sierra...', mas não era algo que eu queria saber desavisado. 😕
Alguns filmes, como um Acossado da vida, nem se importariam de entregar eles mesmos o que vai acontecer, imagino, mas não acho que Huston esteja dentro dessa linha de Cinema como apenas um "artefato" para ser visto aos pedaços independente do todo.

Vlademir Lazo | quinta-feira, 30 de Junho de 2016 - 02:16

Reclamações de spoilers deveriam se restringir à filmes recentes, não aos clássicos. E desconheço de onde você tirou que Acossado seja duma linha "para ser visto aos pedaços independente do todo" (inclusive o desfecho de Acossado é tão importante em termos de narrativa quanto o de qualquer filme clássico). Mas curioso mesmo é ver tuas listas e encontrar em primeiro no top do Huston não outro senão o próprio Sierra Madre.

Jules F. Melo Borges | quinta-feira, 30 de Junho de 2016 - 14:34

Ah, é que tinha colocado ele logo na lista pouco antes de ver. Só que acabei adiando e ficou lá. 🙄
Bem, eu realmente não concordo com isso. Era perfeitamente possível se referir aos dois filmes em questão sem entregar o desfecho. Ao menos dar um "sinal" antes, próximo ao trecho mesmo, como muitos fazem.
Eu achei Acossado um caos bem fragmentado, embora a conclusão seja importante. Não é que ele não tenha bem uma unidade, mas não senti ali um fio narrativo consistente. A trama é banal, e embora o final tenha seu significado, ele funciona de forma mais interdependente do que numa conclusão tradicional.

Josiel Oliveira | sábado, 02 de Julho de 2016 - 12:11

Cara, eu vou discordar dessa questão do spoiler.
E eu até entendo essa visão. No mundo acadêmico realmente não dá pra ter essa aversão ao spoiler, é inevitável, você não pode se dar a esse luxo, e acaba se acostumando.. mas o apreço aos clássicos não se resume aos acadêmicos.
Eu, por exemplo, não gosto nem de ler sinopse... acho a experiência muito mais orgânica quando você é conduzido pelo desenrolar da história. O impacto lógico e emocional é completamente diferente, e afinal, a obra foi concebida para ser apreciada dessa forma.. um bom contador de histórias deve saber jogar com isso, inclusive, e esses casos de final inesperado são uma cereja no bolo deliciosíssima quando você é pego de surpresa.
No caso desse texto acho que nem foi um spoiler tão grave. Se eu não tivesse visto O Falcão Maltês provavelmente nem iria lembrar dessa informação quando fosse assistir. Mas eu sou totalmente contra spoiler... acho prudente avisar sim

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