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Críticas

Cineplayers

A bela e a fera em nós.

7,5
Difícil imaginar que um filme protagonizado por uma jovem a um passo do alcoolismo, imersa em melancolia, num momento de encruzilhada da vida, estaria a um passo da representatividade de gênero e da luta por paridade nos dias de hoje, tema tão positivamente constante - cada vez mais. Mas nenhum reflexo do nosso tempo seria mostrado caso o longa de Nacho Vigalondo não fosse tão bom. Filmes como Corra! e Mulher Maravilha têm mostrado que o entretenimento puro e simples pode ser algo aparente; se você sabe e consegue inserir de maneira orgânica discussões do nosso tempo em produtos de apelo comercial forte, o público parece dizer que está apto a consumir. A saída é fazer a massa da receita de maneira equilibrada. 

Vejam o caso desse Colossal. O filme acompanha uma jovem desempregada e sem perspectiva, com um namoro igualmente fracassado (embora de pé, a duras penas), que decide pegar um retorno a adolescência com o intuito de observar o quê deu errado e quando. Esse atalho vem através da antiga casa dos pais e da sua juventude, ainda vazia, para onde ela decide voltar, num misto de recarregar as baterias e tentar não submergir de vez. O reencontro com um amigo de infância e emprego no decadente bar dele parecem representar algo; será? A compulsão por bebida não diminui, a nova realidade parece cada vez mais próxima à antiga... e numa manhã, o mundo descobre que um desses terríveis monstros orientais (os 'kaijus') ganhou vida e ameaça Seul. Aos poucos Gloria descobre existir uma relação sua com o monstro, que conecta os movimentos de ambos. E daí pra frente o filme adquire musculatura surpreendente, e caminha para um rumo de constante reviravolta. 

Vigalondo já tem anos no mercado, muitos curtas nas costas e tantos longas de assinatura coletiva (como V/H/S e ABCs of Death), mas tem aqui apenas o seu terceiro longa de assinatura solitária, o primeiro de alcance global. No entanto todos os seus filmes tem interesse no fantastico, e isso é uma tendência facilmente reconhecível na cinefilia hoje. Como no passado, o cinema de gênero vem recebendo nova dose de estímulo, com cineastas interessado em mostrar sua visão de mundo e suas colocações sobrea a sociedade através desse viés. Aqui, os assuntos da vez são muitos: empoderamento feminino, combate à depressão nos dias de hoje, a melancolia típica da geração Y, a multiplicidade inerente a cada ser humano, tudo absorvido pelo roteiro de maneira funcional e adequada (até certo ponto), azeitado com quilos de referência pop para conseguir acessar todos os públicos. 

As presenças de Anne Hathaway e Jason Sudeikis são muito benéficas para que as contradições do roteiro sejam absorvidas de maneira irônica. Apesar do Oscar vencido, Anne cresceu em Hollywood embebida em comédias românticas de sucesso e com uma imagem ainda hoje associada a filmes de apelo popular (O Casamento de Rachel é uma exceção); Sudeikis se notabilizou por comédias rasgadas sempre na companhia do mesmo grupo de amigos, um típico boa praça certinho. Há um bem-vindo processo de desconstrução na gênese desses dois personagens, e exatamente na escolha de seus intérpretes. De personalidade dúbia, Gloria e Oscar dão oportunidade a seus protagonistas exercitar não apenas um lado diferente de suas personalidades, como também abre pro grande público uma faceta desconhecida para atores tão habituados a produtos de massa, pura e simples. 

Vigalondo no entanto se sai melhor como diretor que como roteirista. Imprimindo coloquialidade a uma situação tão extraordinária, ele trata como usual um ponto de partida inacreditável, com um misto de cinema indie e blockbuster hollywoodiano poucas vezes visto recentemente, e incorpora efeitos especiais pontuais e muito bem acabados a um filme claramente tão barato. Já no roteiro, é fácil observar que toda originalidade e frescor da premissa e do desenrolar da espinha dorsal bate de frente com situações que tão comumente destroem narrativas, como personagens que somem sem deixar vestígio (e são excelentes personagens, muito bem interpretados) e determinadas pontas do roteiro que ficam soltas, num estranho desleixo específico que não atinge o produto como um todo. Infelizmente também não dá pra fingir que o problema não existe, e temos então um prato incompleto mas com aspectos positivos de sobra, que de tão brilhantes quase apagam os problemas. 

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