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Críticas

Cineplayers

O filme sobrevoando.

5,0
Decerto que há não um universo – não sejamos exagerados –, mas um mundo possível em que Comboio de Sal e Açúcar (idem, 2016) decole enquanto filme propriamente dito, operações progressivas de um acontecimento que mobiliza para alterar e transformar, e não se assemelhe à narrativa reiterativa e mecânica dos capítulos de livros de história. Um mundo em que ele, o filme, lentamente não se liquefaça nesse recorte histórico estéril assinado, dirigido e adaptado por um mesmo homem, numa narrativa de sofrimento interno pós-guerra civil, quando Moçambique ainda sangrava em dissidências internas, conflitos que dilatavam travessias em mais de seis vezes o tempo previsto, balas riscando o ar e ricocheteando pela maquinaria e trilhos de ferro, ameaçando grávidas e sonhadores com uma nova vida ganha através do açúcar. Diante disto, sabemos, olhos brilharão por reconhecimento histórico, ancestralidade partilhada ou humanidade frágil, latente. 

A questão, logo desdobrada, não repousa, portanto, na verossimilhança do armamento, da ambiência incensada de medo; pouco importa se aquelas paradas do comboio “existiram”, se certos soldados se encrespavam de escárnio diante de tenentes inclinados ao marxismo, se a mítica de Moçambique antecipava ataques pelo assobio dos espíritos, porque adiante de toda a permeabilidade desse trecho histórico e das inferências do meio político tectônico nos sujeitos em estado limite, um marasmo não demora a “tique-taquear” em impaciência a cada avanço narrativo, tornando as modulações da trama, sejam pelo avanço ou parada do comboio, uma sucessão de falhas de decolagem: por síntese necrosada, a obra neutraliza a si mesma, e as agruras dos viajantes e soldados, se fragmentadas entre “questões” de gênero, fascismo e instabilidade civil, logo começam a circular entre si, ininterruptamente. O inferno mais próximo do tédio que do sangue.

Seguindo uma ordem cíclica quase ordenada por si só, ou quem sabe por acidente, o mecanismo transparece, apercebemo-nos que um soldado ameaçará possuir uma civil inocente, que a gangue de Xipoco fará uma investida – miserável em palpabilidade dramática, diga-se de passagem – e que o superior em comando dará ordens sensatas, ad aeternum; ainda, mas já não sabemos mais se, mesmo na literatura que o origina, por pura obrigatoriedade da cota romântica, também, pincelam-se momentos de afeto e enamoramento entre o casal, e se nestes tampouco se investe qualquer ânimo que ultrapasse um jogo de oito ou dez frases trocadas à rigidez quase ensaiada dos atores, é porque, novamente porque, e mil vezes se justificará assim, inscrever dois atores num quadro e pedir que representem ecos de uma esperança política não é o mesmo que, ali, naquele mesmo espaço, vivenciá-los nesse delicado liame que separa o vivo da possibilidade de ser não o morto, mas o sonhador possível. Encenar não é dispor; dizer uma dor não é veiculá-la – se ela não se manifesta enquanto me digo doído.

Fuller, Kubrick, Gibson, Ford, todos convulsionariam de pavor com tamanha pobreza: como pode uma guerra ser abertamente amputada de seu extra-campo? Os fuzis disparam saraivadas, os civis se protegem com um ou dois gritos (não esquecer da triplicação de todos os “efeitos”); corte; uma cruz de paus montada sobre a areia para honrar o morto; acabou. Constrói-se toda a ideia de ameaça, do suor pela sobrevivência, a historicidade está ali, ainda que sobrevoando como uma pomba assustada, e o que poderia ser um rasante acaba num cisco discreto. Em algum momento, uma das mulheres dirá: “o importante é nascer”, firmando orientação humana dos tempos, daqueles tempos, e afastando do futuro qualquer enfeite ou cintilação de esperança. Não sabia ela que a tábula de lei única guiaria também a própria obra. Nasceu? É importante? E?

Num alcance dramático de ator global sob contrato para comerciais elaborados, suntuosos, micronarrativos, pode não chegar a ser um destrato à história que as performances não passem de corpos com direções e decorebas, podem retumbar ainda nos cemitérios as chagas de um país (continente?) em destratos de fora e de dentro, ou serpentear pelas análises histórico-cinematográficas uma fatia preciosa de uma via-crúcis que é e será também muitas outras vias – mas permanece imperdoável, sobretudo para aquele que conjuga funções de imagem, escrita e magia, que um filme não tenha calor, um fator sequer que se sobressaia para além dos planos que unem céu e mato, tão fugazes em prolongamento quanto a expectativa frustrada... experiência de quê? Ausentou-se um filme, a oportunidade escapou. Há ali algo que sobrevoa, apenas.

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