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Críticas

Cineplayers

Doce estranheza.

7,5
Observar a trajetória anterior e o que provavelmente virá em torno de Ildikó Enyedi é uma tarefa interessante tanto como crítico quanto como cinéfilo. De filmografia curta, porém restrita a sua Hungria natal, Ildiko tem 62 anos e está na ativa há pelo menos 30 anos como realizadora. Há quase 20 anos não entregava um novo longa-metragem, e na década passada apenas dirigiu episódios de uma série local. Na Hungria, Ildikó tem toda uma importância, embora isso não se reverta em realização cinematográfica constante nos últimos 18 anos. 

Porque a diretora, que em seu segundo longa-metragem há quase 30 anos ganhou o prestigiado Camera D'Or em Cannes, foi escasseando depois disso até sumir? A verdade é que Ildikó chegou a Berlim esse ano pela primeira vez na competição, com seu oitavo longa e condição de azarona. Saiu de lá com uma unanimidade rara, diria até raríssima: Urso de Ouro, FIPRESCI e júri ecumênico, todos para Corpo e Alma, sua alegoria romântica que vai deixando de ser estranha aos poucos para ser apenas terna.

O filme causa estranheza por se tratar de uma aparente história de amor (ou que irá se tornar de amor) passada num matadouro bovino. Não, Ildikó não ameniza o público do lugar onde está, e ao menos uma cena explícita retratando a rotina local faz um estômago mais fraco revirar. O curioso é que o roteiro "brinca" com essa situação, quando durante a contratação de um novo funcionário o chefe de departamento avisa a ele que deveria desistir do trabalho se não estava preparado para a realidade dali. Esse mesmo chefe é um dos protagonistas da trama, um homem solitário com o braço esquerdo paralisado, de mais de 50 anos, e que leva seu trabalho de forma mecânica, porém sem grandes arroubos de sonhos. Até a chegada de uma nova inspetora de qualidade, extremamente "caxias" e enérgica, além de muito fechada, que vai desestabilizar logo de cara tanto o ambiente de trabalho quanto principalmente nosso herói.

Ildikó sabe retrabalhar a estranheza que seu filme propõe. Ela apresenta um quadro de coloquialidade que vai sendo desconstruído e retransformado em algo fantástico, mas nada inacessível ou bizarro. É algo esquisito, porém doce, e bem gradual para não afastar ninguém. Quando finca os pés nesse lugar, sem ninguém notar, Ildikó começa a fazer o caminho de volta rumo a "vida real", e os protagonistas começam a desenhar possibilidades concretas para além do onírico. Isso não significa felicidade, mas apenas um quadro reconhecível para qualquer público. No fim das contas não consigo entender o choque inicial das pessoas com o filme, visto que ele é bem tranquilo e suave, talvez até demais. Acho as premiações de Berlim inclusive mais curiosas do que necessariamente merecidas, ainda que eu não tenha visto muito da competição até agora. É uma vitória surpreendente e ao mesmo tempo delicada, o que raramente acontece em festivais europeus.

O filme lida basicamente com os desvalidos emocionais e talvez por isso estereotipe um tanto o grupo de pessoas retratadas, sejam os protagonistas ou seus coadjuvantes. Apesar disso, os protagonistas são tão fluidos e simpáticos, tão rapidamente compramos aquela realidade melancólica, mas que ainda assim não é amarga ou contestada, apenas o roteiro dá um tratamento naturalista a duas pessoas comuns e suas idiossincrasias. A direção de Ildikó é clara e sem maquiagem excessiva, e atinge graus de lirismo nas sequências de sonho que unem os personagens centrais. A estranheza calculada ainda assim é sedutora e ajuda o filme a ter um diferencial, que raramente vemos alcançar um topo de conversas. Essa busca pela simplicidade dentro de um universo desenhado como 'abstrato' transforma a experiência de conhecer o talento de Ildikó Enyedi numa procura por mais (e pelos anteriores) e a vontade de saber o que ela poderá fazer agora no topo, quando o júri de Paul Verhoeven decidiu fazer por ela o que todo festival deveria fazer por um cineasta: jogar luz. 

Visto no Festival do Rio 2017

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