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Críticas

Cineplayers

Cinema de gênero e comentário social se juntam no debut de Jordan Peele.

8,0
Filme de estréia de Jordan Peele, ator mais conhecido por suas atuações em comédias, Corra! é um desses filmes de gênero que buscam tocar em questões ligadas ao homem ou à sociedade, nesse caso o racismo, para conferir a si mesmo certo valor mais elevado do que um filme de gênero qualquer. Embora essa ambição seja tremendamente falaciosa, porque o valor de um filme nada tem a ver com o tema ou seus discursos, o filme de Peele parece lançado num momento histórico precisamente adequado, com a questão de raça na industria do cinema e a paranoia constante que é o cotidiano do jovem negro americano sendo debates atuais e efervescentes.

Na história, Chris Washington (Daniel Kaluuya, de Siccario) viaja para o interior para conhecer os pais de Rose Armitage (Allison Williams, de Girls), garota branca com quem namora há quatro ou cinco meses. Chris antecipa certo estranhamento dos pais de sua garota, que não sabem que ele é negro, mas está apaixonado e viaja mesmo assim, contrariando o conselho de seu melhor amigo Rod Williams (Lil Rel Howery) que alerta: “nunca vá para a casa dos pais duma garota branca”.

Antes mesmo de chegarem ao destino, Chris e Rose passam um aperto ao atropelarem um cervo. O corpo desfalecido no animal à beira da estrada mexe estranhamente com Chris. Os olhos do cervo refletem os seus, e a figura se torna mais do que um acontecimento infortuno numa viagem, mas um verdadeiro presságio da escalada do perigo e da violência que vão se seguir. Todas as relações que se seguem, desde o policial velada e abertamente preconceituoso na estrada até os pomposos convidados da festa dos pais de Rose, trazem consigo um profundo desconforto em Chris, que começa a desconfiar das aparências impecáveis que cercam a residência dos Armitage.

Walter e Georgina, dois funcionários negros dos Armitage, nada contribuem para diminuir o desconforto de Chris. Ambos parecem suspeitosamente domesticados, sem resquícios de qualquer personalidade ou emoções próprias. Na festa, os convidados proferem comentários preconceituosos disfarçados com cruéis condescendências. O único convidado negro, com quem Chris tenta conversar assim que o percebe, parece tão domesticado quando Walter e Georgina, mas a familiaridade de seu rosto faz com que Chris aumente suas suspeitas sobre a índole dos Armitage.

O mais legal do comentário social que Corra! realiza é que todas as questões referentes à raça estão submetidas à estratégia narrativa de relacionar a condição dos negros – aqui representados por Chris – num ambiente dominado pela cultura branca com uma história de perigo e paranoia crescentes dentro de um filme de gênero terror. É retirar o discurso do lugar da admoestação para colocá-lo em jogo na história, possibilitando as mais diversas relações e impressões, através de questões ligadas à forma do filme: a apreensão, o suspense, a claustrofobia, o anacronismo, etc. O incômodo de Chris com as situações que lhes são apresentadas confundem-se o tempo todo. Tratam-se de experiências de um protagonista de um filme de suspense conspiracionista, ou das de um homem negro num espaço tão predominantemente branco?

Mais do que isso, a grande cartada do filme parece ir um pouco mais além. Os antagonistas não são apenas brancos, mas brancos liberais. Como Chris Rock apontou no seu monólogo de abertura dos Oscars 2016 (um dos mais controversos da história em razão da campanha #oscarssowhite), tratam-se dos “brancos mais bondosos do planeta”. Representado pelos Armitiges, os brancos liberais do filme manipulam e controlam um grande número de jovens negros para usá-los como sex slaves and shit, numa tentativa bastante clara de Jordan Peele em relacionar esse domínio literal com o real e mais sutil realizado pela américa branca liberal, que transveste-se como liberta de preconceitos, enquanto negam oportunidades para que a comunidade negra se expresse através da massiva indústria cultural norte-americana.

A manifestação desse domínio branco sobre o negro na estrutura diegética é o sunken place, o lugar afundado, uma espécie de limbo onde o sujeito hipnotizado permanece flutuando cercado da mais densa escuridão, fitando apenas uma tela à distância, que é ligada aos olhos do corpo que o sujeito costumava ocupar. A espacialidade desse lugar é absurdamente horripilante e na medida em que se torna claro para o espectador que a consciência de uma série de jovens negros estão perpetualmente ocupando esse lugar de absoluto vazio é angustiante – seria preferível a morte. É inclusive com o retinir de uma colher de prata sobre uma xícara de cerâmica que o processo de hipnose se realiza, numa clara figuração da expressão americana “being born with a silver spoon in your mouth”, que indica privilégios de berço.

Mais do que relacionar noções sobre questões de raça com questões formais ligadas ao gênero terror, o grande valor de Corra! está na concisão de sua história, muito redonda e bem estruturada, repleta de antecipações de acontecimentos ou elementos futuros na história, como o orgulho de Rod em ser um agente da TSA, o isolamento da casa que contribui bastante para o clímax, a hipnose e seus processos, os olhos e a sensibilidade de Jim Hudson que lhe dão motivação para fazer o que fez, ou os avós de Rose junto de seus desejos e motivações. Partes e questões que o filme trabalha no terceiro ato e que são mencionadas ou explicitadas nos dois primeiros, criando um universo fílmico particular bastante substancial, o que sempre contribui para potencializar as reações do espectador à história.

Fora isso, o que parece também bastante interessante é como Peele faz uso tão livre do humor dentro de uma história bastante macabra e repleta de desdobramentos socioculturais. Tornar o personagem de Rod tão fundamentalmente importante nos arcos finais da história investe Corra! de um tipo diferente de energia, fazendo com o que filme se sobressaia um pouco de outros exemplares mais recentes de suspense e terror. Obviamente, investir em comédia em um filme de suspense não é nenhuma novidade. Mas houve muito mais humor no filme do que eu anteciparia, e isso particularmente me agradou bastante, embora entenda que esse recurso possa não ser para todos os gostos.

Embora a impressão inicial com o filme me tenha sido extremamente positiva, é comum que a relação com os filhos de Sundance esfrie com o tempo. As reações, no entanto, podem variar. Dependendo da raça ou da inclinação ideológica de quem assiste, o filme pode afetar mais ou menos. Há certamente um grande valor na história e na estruturação do roteiro, mas a direção parece bastante medíocre. Alguns poderiam preferir que o filme investisse mais na seriedade de seus temas, ou que o final pelo menos desse mais conta de expressar da ironia cruel que é existir numa sociedade tão enraizada em preconceitos raciais. De qualquer forma, Corra! parece bastante preocupado com ser acima de tudo um bom filme de gênero e promete ser um dos mais comentados do ano.

Comentários (4)

Paulo Faria Esteves | quinta-feira, 18 de Maio de 2017 - 21:44

Esse parece ser um dos melhores do ano, só espero que não me desiluda como fez o também-Sundance Corrente do Mal. PS: A imagem da crítica está bem impactante!😲

Pedro Hennrique Gomes de Oliveira | sexta-feira, 19 de Maio de 2017 - 20:41

Não sou muito fã de filmes de terror não, gosto bastante de O iluminado pelo fato de ser um terror psicológico e com boa história e não de muitos sustos... Assisti esse filme hoje cedo, me surpreendi, o modo como ele trata do racismo velado através de um filme de gênero é no mínimo inesperado e surpreendente!!!

Kennedy | terça-feira, 23 de Maio de 2017 - 00:02

2017 está sendo um excelente ano para o terror/suspense. E esse aqui é sem dúvidas um dos melhores do ano até agora.

E olhe que só estamos na metade do ano, época em que os filmes são geralmente mais fraquinhos.

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