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Críticas

Cineplayers

Buscando a um e a outro

8,5

Tem certas produções que conseguem captar a sensorialidade do que retrata, sejam os ambientes, sejam as pessoas confrontadas com a ficção. Apesar de apresentado como um documentário, Uma Corrente Selvagem passeia na fronteira entre gêneros até que não sobre nada além de um borrão. Ao literalmente mergulhar no micro universo habitado por Chilo e Omar, o longa de Nuria Ibañez Castañeda consegue se embrenhar pela natureza simples porém tornada esplendorosa pela forma como se une ao que de humano nasce ao redor dela. Com sutileza, vemos que o polvo que tenta se apossar do braço de Chilo na primeira cena reflete uma vida prestes a necessitar de ventosas para completar um vazio primeiramente auto imposto, que vem rapidamente cobrar o preço do exílio. Ao longo de sua curta duração (70 minutos), o filme consegue nos fazer conectar com cada mínimo elemento em cena, seja humano, animal ou paisagístico, ainda que tudo seja restrito em cena.

O filme funciona como uma fábula emocional humana, recheada de silêncios e interditos. Como se a própria natureza provesse o tempo necessário para o florescer de tudo, o filme acompanha os processos que envolvem os protagonistas e seus afazeres, sua rotina diária que passa pela pescaria (sendo que Chilo tem medo de mar), pelo carinho com os animais e a compreensão dos mesmos, pelas conversas no qual pontualmente revelam detalhes sobre seus passados, até que a conjunção desses fatores pareça caminhar para a formação de novos olhares, novas sensibilidades e possibilidades inimagináveis. Nuria filma com a mesma intensidade o barco sendo puxado para o mar e a costura da rede de pesca, e os detalhes que serão milimetricamente inseridos no roteiro abrangerão uma nova formação para aquela realidade "micro" distanciada da própria realidade "macro", identificadas nesse caso com aspas por se tratar de um conceito muito fechado sobre o que viria a ser o grande e o pequeno, no filme.

Aquele idilio no qual esses dois homens vivem representa em muitos sentidos uma fuga da expectativa social, quando os padrões nos atribuem uma movimentação e o filme trata através de seus personagens sobre a subversão do qual precisamos abraçar vez por outra, quando o entorno estiver insuportável e a saída for uma mudança, em todos os sentidos. Chilo e Omar, cada qual com seu motivo, abriram mão da própria sociedade em si e transitam por um ideal ermitão, de descoberta pessoal e também interpessoal, além de devolver valores caros a respeito da conexão homem-natureza, unindo essas duas forças para voltar a se reconhecer e renascer como algo novo. Natureza e homem: de um lado a impetuosidade e a audácia de ser deserto e mar a um só tempo, do outro lado a diversidade de amar acima de todos os rótulos e padrões.

A diretora cria procura potencializar as raízes documentais do projeto, criando ramificações que nos permite observar a relação dos dois pescadores solitários sob inúmeros pontos de vista. Afastados da sociedade e com poucas oportunidades de mudanças reais em seu dia a dia, Nuria capta as pequenas impressões dadas aqui e ali para montar um quadro amplo de possibilidades, motivando o espectador a filtrar cada nova informação dada. Ao mesmo tempo em que mune seus personagens de personalidade distinta, motivando um envolvimento gradativo com seus parcos relatos. Sabemos que Omar é mais bem resolvido com sua solidão, um espírito livre pleno de intenções. Já Chilo tem um passado trágico que o levou até ali, e até o cachorro que é seu fiel escudeiro entrega sua carência afetiva. Cena a cena, esses dois homens movimentam a parceria que nasce naturalmente para lados provavelmente tão inabitados quanto o ambiente onde estão.

Pincelando meandros da natureza (humana e literal) para contar uma história que debruça sobre as formas de lidar com novas informações que chegam a nossa vida, Uma Corrente Selvagem eventualmente irá frustrar a quem procurar respostas definitivas sobre assuntos tão arraigados, mas o jogo que estabelece entre rotina/quebra de rotina e a dificuldade de lidar com o desconhecido - seja ele da alçada que for - movimentam um filme mergulhado em delicada sintonia de enjeitados, que vislumbram uma saída da zona de conforto em meio ao inóspito lugar chamado coração humano. 

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