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Críticas

Cineplayers

A mitologia pop e o horizonte de expectativas.

7,0
Uma das franquias que provou-se mais duradoura no último meio século de cinema, a saga de Rocky Balboa, de esportista amador e sobrevivente das ruas para lenda do boxe mundial e símbolo da Filadélfia, conquistou uma legião de fãs pelo mundo todo. O primeiro filme, dirigido por John G. Avildsen e escrito e protagonizado por Sylvester Stallone catapultou o ator para a fama, recebendo várias indicações ao Oscar e levando para a casa o prêmio de Melhor Filme da grande premiação do cinema norte americano.

À época, o filme ganhou notoriedade por utilizar o esporte como pano de fundo para contar uma história de um underdog, onde o personagem considerado o perdedor ou azarão contra todas as expectativas irá ascender na vida pelos seus próprios méritos, sendo a divisa entre o fracasso e a vitória dependente apenas do espírito de persistência da pessoa. Uma história que o público pode se identificar em situações sociopolíticas especialmente difíceis, o personagem desse tipo de melodrama espelha a vida de boa parte de seus espectadores, com sua catarse - vencer na vida após um verdadeiro calvário de provações - sendo a nossa catarse.

Quase quatro décadas depois, chega aos cinemas Creed, o sétimo filme da franquia e o primeiro a não ser dirigido nem por Avildsen (que dirigiu o primeiro e o quinto) e nem pelo próprio Stallone (diretor dos restantes); quem senta na cadeira de diretor agora é Ryan Coogler, diretor do bem-recebido Fruitvale Station: A Ùltima Parada (Fruitvale Station, 2012). Como havia feito no quinto filme da franquia, vemos o lendário ex-lutador agora como treinador, ensinando pugilismo ao explosivo e determinado jovem californiano Donnie “Hollywood” Johnson, na verdade Adonis Creed, filho do lendário campeão mundial Apollo.

Coogler reverencia a mitologia com a qual trabalha; Creed é tanto um filme sobre esportes e dramas pessoais quanto é um filme sobre Rocky, enxergando as narrativas dos anos 70 e 80 como um horizonte de expectativas a serem trabalhados, revisitados e mesmo algumas vezes desconstruídos. Adonis, assumindo o papel de protagonista e personagem ponto de vista, lembra tanto Apollo quanto Rocky em sua construção. Filho de um relacionamento extra-conjugal do ex-campeão e criado por sua viúva, tem a personalidade determinada e excessiva do genitor, com a camada extra de que desde cedo se preocupa em não fazer sucesso na sombra de seu pai mas seguir o próprio caminho. Um azarão nos moldes de Rocky, mas com seu tempero particular.

É nisso que ele encontra Rocky para ser seu mentor no meio do caminho. O campeão aposentado simpatiza com a figura do jovem rejeitado e mal-visto e na parceria que desenvolve com o mesmo, também tem que lutar as próprias lutas: a narrativa agora mostra Rocky com dores de coluna, pouco familiarizado com tecnologia, conversando com os entes queridos que se foram, tendo crises de saúde e tendo que ir ao médico… Entre humor, explanação e o didatismo, o filme dá o recado: a lenda do cinema agora está ficando velha, e o filme ao aprofundar o arco “mentor e discípulo” constante em vários momentos da franquia se esforça de maneira correta ao empregar nostalgia, mas também dar uma continuidade às suas próprias ambições. 

Pois Creed é nostálgico com essas grandes figuras do passado com as quais crescemos assistindo, sendo em grande parte um elogio ao “melodrama de esportes”, mas também não esquece de ser um filme atual, com tudo que se pode observar de positivo e negativo a partir daí: o festival técnico domina as lutas - planos detalhes, balé de montagem, super câmera lenta, câmeras ponto de vista, isolamento alternado com preenchimento na composição da malha sonora, detalhismo em violência gráfica, flashbacks em velocidade estonteante - trazendo uma composição de estímulos para dentro do ringue.

Essa ambição de explodir o filme aos sentidos nessas set-pieces - quase como para se fazer entender a dor que é lutar até as últimas energias - contrasta com o filme referencial e reverencial, que se apropria de trechos e versões da clássica trilha de Bill Conti, emula figurinos, reprisa locações, mas imputando diferenças visíveis, naturalizando-as ao nosso contexto.

A música motivacional agora é em forma de hip-hop, onde o racha-assoalho da nova geração prega igualmente sobrepujar as dificuldades e denunciar a realidade, embalando as corridas de Adonis de moletom cinza pelas ruas da Filadélfia, que amarga com pobreza e violência, mas ainda mantém na lembrança os nomes de Creed e Balboa como ícones de inspiração - reenquadrada em composições visuais referenciais com propósitos próprios, a narrativa do filme cria suas próprias necessidades sem jamais esquecer da fonte.

Sim, Creed presta homenagem o tempo todo. Muitas vezes praticamente é uma nova versão do mesmo conto. Mas a maneira que conta os percalços de Adonis e Rocky, imputando desafios fora da ringue, não os perdoando por seus defeitos - o filme tem juízos de valor sobre seus personagens, ainda que não os condene, propriamente falando (são filmadas mais chances do que consequências, afinal de contas) - e apropriando novas estéticas a este subgênero particular de melodrama, dá um ar “moderno” à franquia, que mesmo podendo ser visto como uma dificuldade de cortar o cordão umbilical ou como uma tentativa de lucrar em cima da nova geração, também parece questionar como os velhos mitos funcionam com as novas regras de composição estético-narrativa de hoje.

O melodrama atual ainda é o mesmo de ontem - diálogos afiados, reflexivos e muitas vezes até mesmo professoral, panos de fundo que são praticamente agendas sociais, música dramática entoada como um cântico religioso em homenagem a figuras humanas. Trocam-se as tendências, constroem-se novas referências, novas gramáticas de misé-en-scene compartilham espaço com as antigas - montagem frenética, travellings, perspectivas pouco usuais - e fica o filme artesanal contemporâneo, que repagina o classicismo narrativa para voltar ao seu propósito inicial, como a obra que desperta emoções, incita temáticas, consagra os mitos (no sentido pleno, de relato fantástico e heroico) com a forma de suas épocas.

Creed é um fruto desse paradigma, eterna reprodução e eterna renovação das narrativas primordiais, mas regido com eficiência e sabedoria, criando com folga um dos filmes mais consistentes da franquia.

É claro que o filme serviria bastante bem como o canto de cisne do personagem, mas Balboa, como ideia cristalizada, está longe de ser enterrado de vez: estimado por criador e público, sempre poderá sofrer mais provações, encontrar mais parceiros e adversários. O criador pode aposentá-lo, envelhecê-lo e mesmo brincar com o seu destino de maneira limítrofe: como símbolo de um ideal (a superação eterna), o boxeador pé-rapado é um herói moderno da cultura pop e, como os indicadores de sucesso indicam, ainda longe de ser esquecido em sua função mitológica.

Comentários (8)

Arthur Brandão | sexta-feira, 15 de Janeiro de 2016 - 17:22

Aqui mal teve Os Oito Odiados, quem dirá Creed. 🙄 Mas excelente crítica do Brum, estou interessado em ver e rever o Stallone!

Daniel Borges | sábado, 16 de Janeiro de 2016 - 23:32

chorei 6 vezes, uma de soluçar. só perde pro original.

Rodrigo Giulianno | terça-feira, 19 de Janeiro de 2016 - 13:36

É o melhor da franquia!

Rocky, Rocky Balboa e Creed...formam uma trilogia de respeito...é só esquecer o resto...

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