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Críticas

Cineplayers

Feito com dinheiro nazista, filme é um dos mais dissecados do cinema francês.

7,5

Quai des Orfèvres foi durante muito tempo um dos mais emblemáticos filmes franceses. Ao vê-lo nas telas, os jovens críticos da Cahiers du Cinéma entraram em êxtase. Acreditavam ser esse filme a concretização de suas teorias sobre o cinema: um filme noir, inspirado nos policiais americanos e no cinema de Alfred Hitchcock, com orçamento baixo e falando de gente simples envolvida em crimes, como expressão do grande cinema. A partir daí, os críticos partiram para a direção e estava fundada a Nouvelle Vague francesa.

Dirigido com leveza, inteligência e de maneira brilhante por Henri-Georges Clouzot, que acabaria vencendo por essa obra o prêmio de melhor diretor no Festival de Veneza em 1947, narra a história de um músico ciumento que decide matar o produtor de cinema que assediava sua mulher, uma cantora de teatro de revista. Prepara um álibe furadíssimo, pega sua arma, vai até a casa do produtor e o encontra morto. Também sua mulher e a melhor amiga dela estiveram na cena do crime e ninguém tinha um álibe minimamente convincente para contar à polícia.

Tudo isso é narrado com uma envergadura realmente impressionante, mais ou menos como números musicais enquanto a cantora ensaia e se apresenta nos dance hall franceses da década de 40, no pós-guerra, com o país destruído e com a platéia se divertindo com toda sorte de bizarrice, de corcundas e anões, no palco, desfrutando de uma grande liberdade sexual (é clássica a cena do leite derramado).

É quando entra em cena o atrapalhado investigador, uma espécie de ancestral do Inspetor Clouzot, de A Pantera Cor-de-Rosa. Atrapalhado, teve o famoso casaco dos policiais (ninguém o reconhecia sem o casado) roubado na própria delegacia e nunca encontrou o ladrão. Ele mesmo destrói uma das provas do crime ao queimá-la para acender o cigarro. No final, claro, mesmo usando os métodos estapafúrdios e abilolados, vai descobrir o verdadeiro assassino, enquanto tenta fazer com que o filho passe no exame de fim de ano.

Clouzot, o diretor e roteirista, segue Hitchcock e entrega logo de cara o assassino, mas haverá uma surpresa até o final. Ele mistura os gêneros de maneira quase acintosa, o que deve chocar os fãs do gênero noir, ao enfiar comédia e teatro de revista no meio – uma das músicas, Dance avec Moi, é um dos pontos altos do filme. Aproveitando o ambiente das coxias dos teatros, seu espelhos e espaços apertados, mantém firme a estética noir nos enquadramentos e na luz, enquanto desenrola um roteiro intricado, de diálogos ácidos, ambigüidade sexual, loiras perveras, todo tipo de escumalha que habita esse tipo de estabelecimento. Nunca esquece as personagens e as desenvolve, sempre com alguma forma de trilha sonora ao fundo, na maioria das vezes hilariante.

O título, mantido na versão brasileira que saiu em DVD, faz referência à chefatura central de polícia da França, uma espécie de Scotland Yard. Como o filme foi feito depois da liberação do país do domínio dos nazistas, Clouzot manteve o filme no mesmo patamar de diversão popular que reinava então, mas engrandecendo-o por dentro com sua inteligência e fino humor. Faria melhor depois, com O Salário do Medo (1953), pela qual venceu o Festival de Cannes, e Diabolique (1955), sua versão para Vertigo de Hitchcock.

Mesmo usando atores famosos na época, o filme não fez muito sucesso no país natal. Segundo consta, o humor do filme é essencialmente ''gaulês'', obsessivo, explorando manias francesas, o que afastou a maior parte do público. O investigador, profundamente cínico, desfia piadas sobre política, sociedade, mulheres, negros e lésbicas sem piedade, o que causa um certo desconforto tamanha a acidez em relação a tudo e todos – apesar de que o diretor é curiosamente bastante generoso com as personagens. Tanto que o autor do livro de origem ficou furioso com a adaptação debochada de um romance que se pretendia essencialmente noir.

Até com a loura fatal ele tirou sarro. Chamou para o papel Simone Renant, considerada então uma das mais belas atrizes francesas (no DVD da Criterion Collection tem uma entrevista com ela), a essência da feminilidade, especialista em papéis de 'coquette', para interpretar a fotógrafa lésbica Dora, que vivia dando em cima da atriz principal. Na entrevista, Renant reafirma a fama de carrasco do diretor no set, que trabalhava com storyboards minuciosos, um ferrenho controle do set e exigia pontualidade dos atores até nos minutos. Ele estapeou o ator que interpretava o marido, Bernard Blier, para que ele fizesse corretamente a cena do interrogatório.

Poucos filmes foram tão dissecados como esse, inclusive por tanta gente famosa (Godard, Truffaut). Afinal, Clouzot trabalhou com dinheiro dos nazistas durante a ocupação e era acusado (ainda é) de colaboracionista – há uma parte da crítica que o despreza. Crime em Paris fez jorrar muita tinta, há uma centena de artigos minuciosos sobre ele na internet. Na recente retrospectiva que o Film Forum de Nova York fez sobre o cinema noir francês, uma nova cópia em 35 mm foi restaurada especialmente para o evento, fora o DVD de luxo da Criterion Collection. Talvez isso gere uma expectativa muito grande e desaponte quem o veja, pois afinal é apenas um bom entretenimento, sem grandes pretensões, mas muito bem feito. De qualquer forma, é parte da história do cinema, incontornável.

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