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Críticas

Cineplayers

A longa espera.

8,5
Um dos romances mais aclamados do século passado, O Deserto dos Tártaros, de Dino Buzzati, é o tipo de literatura difícil de adaptar para o cinema, dado o enorme fluxo de consciência e a sua característica minuciosamente descritiva das intimidades internalizadas do personagem principal. Traduzir em imagens a angústia da espera do jovem tenente Drogo era uma tarefa que só poderia ser de fato executada por um cineasta de grande criatividade visual e sensibilidade, e quando se vê a obra de Valerio Zurlini não sobra outra sensação senão a de que não poderia existir outro mais capaz do que ele. O Deserto dos Tártaros (Il Deserto dei Tartari, 1976) é não apenas a adaptação fortuita de um grande romance, mas o acontecimento raro de um escritor encontrando seu equivalente exato no cinema, já que em essência o livro trata dos temas que mais definem a obra de Zurlini.

A melancolia inerente ao cinema de Zurlini não vem do sofrimento exacerbado de algum personagem, ou de grandes tragédias que mudam a vida de alguém. O simples existir e estar no mundo basta para que seus filmes se desdobrem em desoladores retratos de solidão, perdição, crises existenciais e tormento. Mesmo em trabalhos como Mulheres no Front (Le Soldatesse, 1965), no qual ele se dedica a fortes imagens de guerra e sofrimento feminino, o verdadeiro impacto reside na constatação da finitude e na ausência de motivos e sentidos. O Deserto dos Tártaros trata, em suma, da espera de um tenente jovem e cheio de ambições e esperanças que ganha sua primeira designação no exército como protetor de um forte em um terreno ermo e fronteiriço, que há mais de décadas sofre ameaças de invasão que jamais se concretizaram. O que começa com a ideia de um início de vida, de um primeiro passo no mundo, logo se revela aquilo que todos um dia acabam descobrindo cedo ou tarde: o nada. 

O tempo é esse vilão que assola os personagens de Zurlini, que lhes rouba pouco a pouco cada sonho e pedaço de juventude, que substitui as expectativas pelas frustrações, e em O Deserto dos Tártaros o diretor o explora em seu potencial máximo – é, afinal, um filme sobre o efeito lento e doloroso da espera. A metafísica do livro, tão difícil de ser compreendida fora do alcance da narrativa inspirada de Buzzati, é assimilada por Zurlini através da iluminação que transita entre o real e a ilusão e da exploração do espaço físico. Cada enquadramento do filme é dotado de muitos sentidos, os demorados planos abertos amplificam a sensação do vazio que preenche os espaços entre os personagens – cada um uma ilha isolada a milhas de distância dos outros. O tempo, tão abstrato e inexplicável, ganha uma materialização quase palpável, sendo sentido segundo a segundo, torturando em sua passagem constante e inabalável, levando a cada nova cena um pouco do brilho e da juventude no olhar de cada personagem. De tão distante dos atores que a câmera muitas vezes se mantém, eles não parecem nada além de pontos insignificantes em um todo monocromático e estagnado. 

Quando em ambientes interiores, Zurlini aproveita para adentrar mais na característica pessoal de Drogo, em planos fechados e sufocantes que aos poucos se aproximam da angústia corrosiva que vai matando o personagem que vê sua vida passar de uma forma como ele jamais esperaria. Ao alternar esses momentos com outras tomadas externas do deserto a ser observado do forte Bastiano, o diretor cria a ilusão do tempo castigando um pouco mais a cada nova tomada, sem que os atores precisem falar muito – a situação em si se desenha muito clara, desesperadora e inescapável. 

Claro que o forte Bastiano não passa de uma metáfora para a própria vida, que não caminha para outro rumo senão a morte, sendo esse meio uma tortuosa espera pela chegada dos tártaros, pela razão do continuar. O núcleo hierárquico entre os soldados só reforça a ideia de efemeridade do poder e da pequenez e fragilidade das instituições, todos inevitáveis vítimas de um mesmo destino que os faz igualmente impotentes. Tudo remete ao que o personagem de Alain Delon explicou tão sucinto em outra obra-prima de Zurlini, A Primeira Noite de Tranquilidade (La Prima Notte di Quiete, 1972) sobre a morte ser a oportunidade de redenção, a chance de se dormir sem os sonhos, o livramento do desejo. Mas até que ela chegue, nos resta esperar; até que ela chegue, a vida escorre pelos dedos de Drogo enquanto ele aguarda no alto do forte Bastiano a olhar o horizonte sem fim. 

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