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Desprezo, O

(Mépris, Le, 1963)
8,3
Média
386 votos
?
Sua nota

Críticas

Cineplayers

Um filme perfeito.

10,0

“Andre Bazin disse: ‘O Cinema mostra-nos um mundo que cabe em nossos desejos.’
O Desprezo é a história deste mundo.”

Da narração inicial de O Desprezo.

Qualquer tipo de texto sobre um filme como O Desprezo (Le Mépris, 1963) só é cabível caso seja levada em consideração que tal texto é incapaz de existir verdadeiramente caso não seja ao menos ligeiramente didático. Em outras palavras, falar de um filme como O Desprezo é ter que comentar sua ordenação de acontecimentos, de inspirações e, sobretudo, de imagens. Jean-Luc Godard foi até a Itália filmar a adaptação de um romance de Alberto Moravia (responsável por outro livro que rendeu outro grande filme, O Conformista [Il Conformista, 1970], de Bernardo Bertolucci), nos estúdios da Cinecittá e em locação em Capri. Brigitte Bardot protagoniza o filme, Fritz Lang faz uma participação como Fritz Lang. Em tela, uma espécie de adaptação da Odisséia, de Homero. Tudo em O Desprezo é sobre a imagem. E sua compreensão só é possível de forma contemplativa de tais imagens e de como elas constituem uma lógica própria na carreira de Godard – e no cinema como um todo.

Godard, antes de cineasta, era crítico da renomada Cahiers du Cinema (renomada hoje, principalmente por conta do próprio Godard, Truffaut, Rohmer, Resnais, Chabrol, que de ensaistas passaram à função de direção depois da revista), um grande entusiasta do cinema e do poder que este tem. Junto dos diretores supracitados, Godard foi responsável pelo resgate e pela melhor compreensão do cinema de muitos cineastas, como Hitchcock, Howard Hawks e Nicholas Ray, por exemplo, que para muitos eram tidos como artistas operários, diretores de meros entretimentos. O amor pelo cinema e pela força do cinema desses diretores e de tantos outros foi a motivação que impulsionou o cinema realizado por Godard. Acontece que o marco primeiro do seu cinema, Acossado (À Bout de Souffle, 1959), propunha uma quebra com certos paradigmas narrativos, com finalidade de compreender uma nova lógica narrativa possível que não necessariamente passasse pelo que já era tido como convenção. As quebras na linearidade, a montagem com jump cuts, os movimentos diretos, tudo em Acossado funcionou como uma nova inspiração para os caminhos futuros do cinema. Porém é em O Desprezo que Godard finalmente afina sua tentativa de invenção com a particularidade que o cinema tem de mais fascinante: o elogio à imagem e ao sonho.

A cada instante no filme é como se o espectador se visse diante de uma grande emboscada, de um paradoxo complexo e constante. Ao mesmo tempo em que somos encaminhados a entrar num mundo de ilusões e projeções, somos puxados pelo diretor, através das falas de seus personagens (muitas delas citações de autores famosos, que vão de Dante Alighieri a Friedrich Hölderlin), a encarar o cinema de forma realista, na medida em que isso é possível. Podemos seguir a narrativa de uma forma emocional, com envolvimento e identificação com os personagens, mas nunca devemos esquecer que estamos diante de um filme. O primeiro plano, após o título ser exibido, mostra justamente uma personagem que ainda não conhecemos, praticando uma ação que ainda iremos ver no futuro. A execução deste plano é o que interessa naquele momento, vindo acompanhada de uma narração em off, relacionando os créditos do filme. São passadas, deste modo, todas as informações técnicas relevantes para que o público saiba quem realizou o que será visto, quem são os responsáveis pelas imagens que ainda virão. No final do plano, a câmera que filmava a personagem volta seu olhar para a outra câmera, que filmava esta ação, a que funciona como olhar do público. Neste ponto somos nós os observados, não mais os presupostos a observar. A quebra desta parede cinematográfica já determina prontamente que o filme em questão se trata, acima de tudo, de ser um filme.

Tudo isso poderia ser mais facilmente resumido caso eu simplesmente afirmasse que O Desprezo é um filme metalingüístico. Mas também seria raso demais fazer tal afirmação e, principalmente, seria um tanto ilógica, já que o tratamento da imagem pela imagem não basta para definir o filme, mas a busca pela definição da imagem e seu significado existencial. De tal modo, a captação do momento onde o título se explica é responsável por um dos pontos altos do cinema em todos os tempos. A personagem de Brigitte Bardot, casada com um roteirista que acaba de aceitar de um executivo de estúdio americano a proposta para reescrever o roteiro da Odisséia, que Fritz Lang está filmando, é incentivada pelo marido a ir sozinha no carro do executivo, enquanto ele mesmo seguiria um caminho solitário. Apesar da relutância dela, a insitência dele acaba fazendo com que ela entre no carro e é esta ação que modificará os rumos da narrativa (tanto neste ponto do filme, quanto futuramente, quando a presença da personagem no mesmo carro a levará para um destino trágico). O preciso momento em a personagem deixa de amar o marido e passa a desprezá-lo é plenamente palpável, o que não deixa de ser impressionante, pois estamos tratando aqui de algo inteiramente subjetivo e abstrato. Mas verdadeiramente, tanto o filme quanto a sensação passam a ter outra perspectiva a partir desse momento e a mudança irá conceder a reflexão sobre esse caminho que não terá mais volta.

No cinema de Godard, a captação da imagem é significada como algo de cunho sublime, como se essa ação possibilitasse mesmo a vida eterna de um momento. Essa eternidade imagética é ainda mais importante que a eternidade ideológica, por isso a constante mudança de perspectiva e expectativa diante de um filme ou do cinema como um todo é necessária para que a sobrevivência da arte seja real. O personagem do executivo, interpretado por Jack Palance, pode ser a representação da frieza do dinheiro diante da latência artística do verdadeiro ser criador, representado por Fritz Lang e pela defesa da integridade da obra de Homero. Porém, mesmo que a mensagem final ainda corrobore com uma idéia superior utópica de plenitude da idealização, Godard deixa claro eventualmente saber que a existência do cinema só é possível por conta dos diversos fatores funcionais capazes de gerar a beleza. Em determinado momento, perto do fim do filme, a personagem da tradutora diz que “quando se faz filmes, os sonhos não são suficientes”. Faz-se necessário deixar de habitar o mundo de Homero para que a realidade seja aplicada (e assim Ítaca é impossível, ainda que imaginada).

E no final das contas nada é suficiente caso o cinema seja incapaz de fazer o básico de sua proposta: emocionar. A personagem de Brigitte Bardot diz para o marido, já depois dele compreender os motivos de seu desprezo, que o detesta por ele já não ser capaz de lhe causar emoção. Caso Godard fizesse um filme somente baseado nas questões que estão por trás da criação, O Desprezo poderia consistir simplesmente num retrato básico sobre um filme dentro de um filme. Mas enquanto é proposta uma reflexão sobre tal criação, Godard faz questão de lembrar constantemente que a integridade da imagem, seja tida como realista, seja como lírica, é que deve determinar nossa paixão para com o que sentimos, mesmo sem esquecermos que ela está ali planejada como imagem. A música pode ser usada como interlúdio para a fala (ou seria discurso?), como fundo para a imagem, como fluxo de uma sensação, mas sempre é provada como música e intervenção, que vem de um lugar de fora, presente ali para te levar a sentir algo. O mesmo é possível identificar nos planos gerais rigorosos e quase geométricos, quando filmados em Capri, com um cálculo preciso sobre a beleza, mas que mesmo assim não deixa de ser belo.

A geração da imagem e absorção dela por quem a vê está diretamente relacionada a uma idéia colocada no filme por Fritz Lang, refletindo sobre a força que existe na presença e na ausência de Deus. Quando a personagem de Brigitte Bardot deixa de existir como imagem, poderia ser compreendida a ausência deste elemento sublime, mas o que na verdade se prova verdadeiro é que a imagem, uma vez captada, poderá sempre existir na memória. De certo modo, isso é resultado da fé de cada um, que se senta na cadeira do cinema disposto a receber as imagens que o filme a ser projetado será capaz de lhe dar. E é nessa ação que reside o sublime, a existência de Deus e a capacidade de algo nos emocionar. Como disse o personagem do roteirista no início do filme, contemplando o corpo nu da personagem de Bardot: ele seria capaz de não encontrar nela nenhum defeito e de amá-la “totalmente, ternamente e tragicamente”. É nessas possibilidades que a força do cinema existe e que neste filme encontra uma de suas mais incríveis siginificações.

*Um agradecimento especial a Roberto Federman, pela prestabilidade e gentileza.

Comentários (2)

Adriel Duarte | domingo, 15 de Março de 2020 - 07:33

Uma das melhores críticas que já li no site, e foram muitas. Obrigado.

Alan Nina | domingo, 19 de Abril de 2020 - 14:07

Excelente

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