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Dia Muito Claro, Um

(Hvítur, Hvítur Dagur, 2019)
6,0
Média
5 votos
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Sua nota

Críticas

Cineplayers

À beira do abismo

8,5

Uma radiografia sobre a rotina no luto. Não precisa de legenda pra gradativamente entender os processos pelos quais estão passando os seres humanos no centro de Um Dia Muito Claro, candidato islandês ao Oscar de filme internacional e uma surpresa muito bem-vinda. Não que sua premissa realce como uma novidade insuperável, mas, com a devida delicadeza, é sempre possível reconhecer o frescor de uma obra. O diretor Hlynur Palmason está em seu segundo longa de uma carreira muito bem-sucedida, e aqui demonstra domínio cênico de veterano. Parece não existir opção às escolhas dele, que compõe planos inteligentes e comunicam a história sem necessidade de verbalização excessiva. Ou sem verbalização apenas, em muitas cenas.

Tal qual os melhores contadores de história, Palmason nos deixa preencher as lacunas fornecendo o material essencial possível e fotografando seus planos com riqueza dúbia; há tantos detalhes quanto economia deles, um jogo dinâmico para desenvolver tanto a imaginação de quem assiste, quanto a interação entre essas pessoas, enquanto núcleo familiar/emocional diante de uma tragédia recente e não curada. O diretor sabe em que motivações acessar a cada um dos personagens, colocando-os dispostos em cena para melhor apresentar seus conflitos, explorar suas potencialidades dramáticas e transparecer os seus próprios predicados formais, um bordado cheio de ramificações cinematográficas muito bem desenvolvido.

Apesar dos detalhes amplificados, Um Dia Muito Claro essencialmente é sobre a dor de Ingimundur, viúvo desde a sequência de abertura. Não há cena sem ele, sem suas motivações, sem sua presença de magnitude ímpar, um homem que o filme constrói com detalhamento cirúrgico tamanho que, próximo do fim, quando ele "apresenta suas armas" no registro da ação e da autodefinição verbal, aquela trajetória já tinha sido apreendida previamente. Não por previsibilidade do roteiro, mas por coerência do mesmo, que montou um ser humano cheio de idiossincrasias, alguém muito real com suas qualidades e defeitos muito expostos, um impressionante trabalho em conjunto de Palmason e do ator Ingvar Sigurdsson, que compreendeu cada impressão digital desse homem imerso em uma dor tão profunda que talvez só as tarefas contínuas sejam capazes de aplacar.

Quando a essas tarefas Ingimundur acrescenta uma absurda investigação policial, a trama, por um breve momento, parece sair do prumo gélido constante estabelecido. Porém, o filme como um todo se desloca para uma nova região de análise, ainda interiorizado mas absorto em dúvidas e um estado de desespero crescente que reverbera em tudo à sua volta, como se o protagonista fosse contaminando não apenas às suas relações, mas absurdamente regesse uma espiral febril de consequências imprevisíveis, que antecipam um estado de caos interno prestes a eclodir. Duas cenas prévias são repletas desse simbolismo, uma incluindo um programa infantil assistido pela pequena neta de Ingimundur no qual o tipo central do show grita à crianças estáticas, "Todos nós vamos morrer um dia!", e uma segunda bem delongada que começa com uma martelada no dedo e termina no canto estridente de uma composição clássica de Brahms, tudo diante do dilacerado protagonista.

Ainda que seu desfecho seja longo em demasia, apontando inúmeros momentos para o término e esticando a mensagem, não há como negar que a experiência desesperadora empreendida do lado de lá da tela não vazou para o público, que se exaure esperando um término minimamente apaziguador para o todo. Questões subjetivas a parte em referência a melhor maneira para encerrar essa história, o diretor nos brinda em continuidade com sequências inspiradas que só amplificam suas questões, com o protagonista Ingimundur recebendo as respostas que esperava e indo além, ao restaurar a própria humanidade e ter consciência das deformidades inerentes a todos nós.

Crítica da cobertura da 43ª Mostra de São Paulo

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