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Críticas

Cineplayers

Um filme sensível e visualmente lindo, mais um belíssimo trabalho de Walter Salles.

7,0

Apresentado em Cannes, foi aplaudido durante vários minutos por jornalistas do mundo todo, reconhecendo mais uma vez um belo trabalho do diretor brasileiro Walter Salles, criador de filmes emocionantes que sempre exploram e entram fundo nos sentimentos de seus personagens. Foi assim com Central do Brasil e com Abril Despedaçado. Não é muito diferente com seu primeiro esforço internacional (Diários não pode ser considerado brasileiro de forma alguma exceto pelo diretor). O filme é lindo, e possui vários momentos emocionantes. Mas por outro lado, não foi ainda que Salles criou uma obra-prima, não vejo este filme sendo um grande vencedor de prêmios importantes ou populares, mas será sempre um competidor forte, assim como aconteceu em Cannes, onde estava no grupo de favoritos mas acabou perdendo para o filme de Michael Moore,  Fahrenheit 9/11.

Desde seu início, o filme faz questão de demonstrar que não quer ser épico, no sentido de demonstrar grandes feitos e acontecimentos. A figura de Ernesto ‘Che’ Guevara é mostrada como humana, sensível (somos apresentados logo a seu problema de asma, que quase tirou sua vida durante sua aventura posterior) e muito confusa em relação ao futuro. Ele deixa de se formar em medicina para realizar uma viagem pela América do Sul ao lado de seu grande amigo Alberto Granado (o velhinho que aparece antes dos créditos finais), deixando uma vida confortável na Argentina em 1952 em troca de uma aventura que se tornaria inesquecível, levando Guevara a se tornar o revolucionário cubano que foi, anos mais tarde.

Essa aventura, às vezes apresentada de forma engraçada, às vezes de forma romântica, foi baseada nos próprios diários de Guevara, e transferida com um enorme carinho para o roteiro do filme, escrito por Jose Rivera. Antes das filmagens, o diretor refez a mesma jornada mais de uma vez, para aprofundar-se e tentar entender pelo menos de forma razoável o que pode ter se passado pela cabeça dos dois amigos, principalmente de Guevara, resultando na completa transformação de sua personalidade e mudança em sua visão do mundo que o cercava. Não deve ter sido um trabalho fácil, mas o filme conseguiu capturar muito bem a transformação do jovem irrequieto ao homem que vivencia e se preocupa com a pobreza e os pobres que o cercam, e quer fazer alguma coisa para mudar isso. Guevara não acreditava em milagres, e não esperava que a revolução acontecesse facilmente, sem a ajuda da união do povo e de armas (ao contrário de Gandhi). Uma simples frase, lá pelo meio do filme, demonstra bem isso, mas de maneira praticamente informal, quando ele ainda não imaginava que teria sua vida mudada.

Toda a jornada é vivida intensamente pelos dois personagens, e de país em país eles vão conhecendo pessoas que precisam de ajuda, de atenção. Guevara, um estudante quase formado em medicina, aprende muita coisa principalmente na prática, e aos poucos vai se tornando uma pessoa popular por onde passa, um tanto por causa de seu bom coração e outro tanto por causa de sua boa sorte. Interpretado de forma muito competente pelo ator mexicano em ascensão Gael García Bernal (que está também no novo filme de Almodóvar, Má Educação), Guevara é sempre uma figura forte na tela. Seu amigo Granado também é tão bem interpretado quanto (embora tenho um jeito mais brincalhão, irresponsável) por Rodrigo De la Serna, este ainda principalmente um ator de TV na Argentina.

O único ponto fraco de todo o lado humano de Diários de Motocicleta fica mesmo com a distância inicial com que o roteiro nos joga os acontecimentos. O inicio do filme é um pouco irregular (ainda que divertido, e sem dúvida a parte mais leve), jogando-nos rapidamente para o início da longa aventura, sem muitos detalhes de qualquer personagem, sobretudo dos dois amigos. Mas vamos aprendendo a conhecê-los melhor durante a viagem, e gostar (ou não) de suas personalidades. A direção do filme é ótima, Salles mais uma vez faz de um filme de baixo orçamento (mesmo que já tenha sido uma produção muito mais cômoda em relação a um Central do Brasil, por exemplo, está longe de ter os valores de um grande filme de Hollywood) algo prazeroso e divertido de ser acompanhado. A curva dos acontecimentos foi muito bem desenvolvida, e o filme vai ficando mais obscuro (alguns podem confundir isso com chato) após sua metade, quando o personagem de Guevara finalmente chega num nível de desenvolvimento pleno.

Como foi falado, o filme é lindo de doer. Servirá com certeza como uma propaganda positiva da América do Sul para os habitantes dos outros continentes. Temos neve, desertos, florestas, patrimônios históricos, calor humano. Tudo isso é demonstrado com perfeição pelo diretor. É um continente rico administrado por pessoas ruins. É o que Guevara percebe ao longo de sua jornada, e ver a fome e a miséria de pessoas que poderiam ser tão felizes e completas lhe dá forças para tentar reverter tudo. Infelizmente, hoje, meio século depois, ainda somos tão pobres quanto antes, é verdade. Mas não é objetivo do filme tentar solucionar ou sequer sugerir soluções para esses problemas. Seria uma enorme pretensão, e foi bom o roteiro de Rivera ter-se mantido longe disso.

Enfim, Diários de Motocicleta é um filme visualmente lindo, com dois personagens centrais muito bem desenvolvidos, e ele ajuda a entender, talvez melhor do que qualquer livro de História, um pouco do nome ‘Che’ Guevara. O filme não julga ninguém, apenas expõe fatos reais que aconteceram com essa figura histórica. Tem uma trilha sonora típica de cada pais (não é um destaque mas agrada) e, mesmo sendo em sua estrutura um drama, diverte e faz rir. Tem alguns problemas de ritmo no início e pode ser confundido com chato no final, mas é um belo trabalho do provável melhor diretor brasileiro da atualidade. Mais do que recomendado!

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