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Críticas

Cineplayers

Um filme quase perfeito. Uma ode contra as desigualdades de nosso continente.

9,0

Quando Quentin Tarantino, a respeito de Diários de Motocicleta, declarou que "um filme não deve ter  somente belas imagens", respaldando a escolha de Fahrenheit 11 de Setembro como o vencedor da Palma de Ouro em Cannes deste ano, ele não sabia a idiotice que estava falando. Diários despertou algo que jamais pensei ter: um sentimento que extrapola a palavra "nação" e que se define na pluralidade da América Latina. Ao recontar a história de dois rapazes comuns que decidiram sair em uma viagem de descoberta de um continente que para eles ainda era um mistério, em 04 de janeiro de 1952, Walter Salles - provavelmente nosso diretor mais reconhecido no exterior - sabia que estava lidando não com uma história comum, e sim a vida real de Ernesto Che Guevara, um dos líderes da Revolução Cubana que provocou mudanças de rumo no mundo todo no século passado.

Mas não há nem sinal de Fidel Castro nem do grande líder Che, que virou ícone pop para adolescentes que acham que revolução é o que faz a música da Avril Lavigne. Há sim a história de Ernesto, que junto a seu amigo Alberto Granado parte de uma Buenos Aires em cima de "La Poderosa", a motocicleta que é referenciada no título, em busca de aventuras e descobrimentos. Mas o que eles não contavam é que as descobertas seriam muito mais radicais e significativas e que estas iriam mudá-los para sempre.

Ao descobrir uma América Latina desigual, pobre, de contrastes, mas ao mesmo tempo forte, vigorosa e cheia de vontade de manter a identidade cultural tão arraigada no povo e na honra de cada cidadão, Ernesto descobrira o continente e a si mesmo. E é isso que o filme de Salles propõe, com um resultado magnífico. O filme é de uma beleza assustadora. Salles parece ter feito sua obra-prima, ao visto que a riqueza de detalhes de cada centímetro de celulóide. Desde a fotografia magistral a tomadas de câmera desconcertantes, tudo parece perfeito. O roteiro, escrito por José Rivera, não deixa de se concentrar em pequenas ações que muito significam, sem medo de se tornar chato ou burocrático. É simplesmente singelo e emocionante, a ponto de me deixar em lágrimas por bons minutos após a projeção, o que talvez o sr. Tarantino jamais conseguirá em sua carreira - mas o cinema para o qual ele se presta não tem esta intenção, como bem Salles definiu ao proferir que "não há nenhuma interseção entre o cinema que fazemos hoje na América Latina com aquele que Tarantino representa".

Se o minimalismo e o cuidado de Salles se revelam assustadoramente perfeitos, não há como se negar que sem dois protagonistas que simplesmente não atuassem, e sim encarnassem os personagens, o filme poderia não funcionar. Mas Rodrigo de La Serna, como Granado, e principalmente Gael García Bernal, como Ernesto, fizeram trabalhos perfeitos. De La Serna esbanja simpatia e naturalidade, equilibrando bem seu papel. Mas é Bernal quem surpreende, ao se desvencilhar do papel de adolescente em fase de auto-descobrimento em E Sua Mãe Também para encarar um personagem que em suas mãos se torna multidimensional, humano, o próprio Ernesto.

E, se o filme não receber os prêmios que merece, ao menos terá a história a seu favor ao saber que não só redescobriu um mártir, mas sim todo um continente ávido por transformações.

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