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Divino Amor

(Divino Amor, 2018)
7,1
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Críticas

Cineplayers

Maria e o Mito — da Caverna

7,5

Gabriel Mascaro é um verdadeiro autor. Daqueles que mantêm um eixo de criação muito bem definido mesmo quando se permite desvios experimentais, como em sua estreia em ficções, Ventos de Agosto (2014). E alguém muito sensível às questões que o cercam, demonstrando um olhar atento sobre o que ocorre na sociedade brasileira em filmes que conversam com pautas contemporâneas urgentes  — seja a PEC das Domésticas, como vimos no espetacular documentário Doméstica (2013), seja as falácias sobre cura e kit gay, debatidas quando do lançamento do estilizado Boi Neon (2015). Um timing sempre preciso.

Ainda mais interessante é perceber como esse cinema político se articula na tela, com inequívoca sofisticação narrativa. Em toda a sua trajetória em longas-metragens (não vi seus curtas) é assim: as premissas dos filmes revelam suas intenções, que se desenvolvem apenas o suficiente em um roteiro orgânico, cabendo às imagens potencializar o seu discurso. Suas obras se valem de metáforas e rigor estético, se expressam mais pela sutileza da semiótica do que pela frontalidade do texto. Essa receita quase desanda em Divino Amor (2018), pelo acréscimo de (com o perdão das comparações com a culinária) um novo ingrediente que divide os paladares: uma pitada de verborragia.

Uma narração interpretada por uma criança é o que conduz esse elemento. Por bem, logo apresenta e dá contexto a essa história peculiar: Brasil, 2027, o país se tornou uma república evangélica. O Carnaval perdeu o posto de maior evento cultural do país para uma festa de música eletrônica que cultua a volta do Messias. E o cotidiano é submetido a forte interferência de ferramentas tecnológicas — e do Estado. Os estabelecimentos são equipados com scanners que identificam a pessoa: se ela é casada, solteira ou divorciada, e quando as mulheres estão grávidas. Para não haver conflito entre rotina de trabalho e religião, as cidades oferecem drive thru de oração — primeiro momento em que o texto abdica de apostar na pura e simples percepção do espectador e expressa óbvia e redundantemente o que já fora encenado.

Essa é a tônica de Divino Amor. Assim como certas imagens soam gratuitas, explicitando uma sugestão anterior suficiente, o estranho voice-over pontua quase tudo que ocorre no filme — de ritmo lento, cerimonioso como um culto. Mas justiça seja feita: em quase todo o tempo, a descrição é autoconsciente, e funcional, e absurda, e provocante. Gabriel Mascaro seleciona chavões religiosos tão cafonas quanto as canções que integram a trilha sonora. As frases de Santo Agostinho parecem escolhidas a dedo, e aplicadas no contexto certo, para soar como orientações de coach vigarista (tão em voga no momento). Coisas na linha de "a vontade de lutar era a esperança de vencer". A cadência insegura, cheia de pausas, do pequeno narrador ganha nuances quando o menino combina termos infantis, bíblicos e sexuais ao descrever as orgias religiosas da Igreja Divino Amor. Perturbador.

O cenário é de uma distopia evangélica. Absorvida por um Estado inchado que promete cuidar da população ("Crivella, é você?!?") por meio da burocracia. E que, como sabemos, só atrasa a vida do cidadão (uma cena em particular remonta diretamente ao ativista Eu, Daniel Blake [I, Daniel Blake, 2017]). Essa realidade totalitária é muito bem representada no momento em que a protagonista Joana — uma funcionária dedicada ao trabalho como à religião — usa um elevador hidráulico para acessar os arquivos físicos (por quê?) do cartório em que trabalha: uma estrutura colossal, de centenas de metros, percorrida em um plano aberto solene que acentua sua grandiosidade frente a Joana. Ou seja, um Brasil imaginário que diminui até o cidadão mais afável aos seus (des)mandos. Será mesmo tão longe da realidade?!

Como um episódio de Black Mirror (o confronto de gadgets avançados e cores rosas com espaços físicos cinzentos lembram muito "Nosedive"), Gabriel Mascaro imagina um futuro pessimista baseado no atraso moral que vivemos hoje. Não é à toa que a fé de Joana se ampara em frases no mínimo questionáveis de Agostinho de Hipona: o maniqueísmo que ele seguia antes e a doutrina da guerra justa (em um viés devidamente manipulado para fins ideológicos) que ele formulou depois representam com perfeição o modo com que o Estado e a religião em Divino Amor atuam, dominando o indivíduo que pensa diferente e sufocando o livre-arbítrio com uma aura dissimulada de bem comum e santidade. Em vez do mundo humanista pregado por Jesus Cristo, as referências são 1984, de George Orwell, e 2019, Brasil, de Jair Bolsonaro.

Vivida intensamente por Dira Paes, Joana é uma funcionária de cartório que personaliza esse Estado opressor projetando a si mesma (e suas frustrações) sobre os casais que dão entrada em pedidos de separação, tentando dissuadi-los da decisão e convertê-los para sua religião. Essa perspectiva limitada, consequência de uma fé cega que se impõe contra a vontade alheia, é representada visualmente pelo carro compacto que dirige, pela casa geminada (e apertada) em que mora, pelas estruturas baixas ou simetricamente quadradas das edificações sob as quais a vemos, comprimida. Joana só percebe sua pequenez perante o regime a que serve quando se torna invisível: ela comete uma (suposta) transgressão e vira vítima de si mesma, do sistema a que se dedicara cotidianamente — em que tanto confiou e ao qual confiou a vida. O despertar de Joana é como a saída da caverna na parábola de Platão. Mas a alegoria fundamental de Divino Amor é a Bíblia Sagrada projetada no Brasil atual. Joana é uma Maria de Nazaré contemporânea. Logo, uma pária.

Divino Amor se transforma, assim, na representação cinematográfica da ideia  — muito difundida entre a militância de esquerda — de que se Jesus voltasse nos dias de hoje, seria crucificado pelo "cidadão de bem" que tanto explora (e distorce) a Sua palavra. O alvo principal dessa crítica é a extrema-direita brasileira, e as atrocidades que profere quase que diariamente, no governo do país. Por isso, é incrível que o diretor e roteirista do filme se aproprie das luzes azul e rosa neon (de novo) para representar a Igreja Divino Amor. Também é por isso que a Festa do Amor Supremo é entoada pela música eletrônica, e os sintetizadores compõem a trilha sonora desde a cena de abertura. São as cores e a música de que a alt-right se apropriou em 2015 para criar memes sobre Donald Trump e ganhar adeptos no mundo. Fashwave. Como dito lá em cima, Gabriel Mascaro está atento ao que acontece à sua volta. E transforma sua visão em cinema como ninguém.

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